Refleti bastante, antes de escrever este artigo. Decidi avançar por dois motivos, aliviar a minha irritação e denunciar práticas que poderão resultar da falta de noção ou da falta de vergonha e decência profissional. Ainda que sem certeza, inclino-me para a segunda opção.
Vou contar quatro casos reais, respeitando o anonimato dos interlocutores, até porque nada acrescentaria à narrativa e ao grito de alerta. Pouco ou nada me interessa apontar o dedo à pessoa ou A ou B. Quero, isso sim, denunciar práticas que, aparentemente, se estão a normalizar com prejuízo para todos nós, enquanto comunidade.
1 – Agendei uma reunião com um senhor que pretendia falar comigo sobre a hipotética criação de uma Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI). No dia e hora marcada, sentámo-nos à mesa, foi-me apresentado um projeto de arquitetura, na ordem dos 2.5 milhões de euros. O empreendedor ou investidor (não sei como designá-lo) queria criar uma “ala” para dementes ou demenciados (comecei por corrigir, devemos dizer pessoa com demência, a pessoa é muito mais do que a doença…). Enquanto apontava, orgulhosamente, para o magnífico projeto de arquitetura, questionei que modelo de cuidados pretendia adotar no futuro equipamento. Após algum silêncio, perguntei se haveria espaço exterior onde as pessoas pudessem caminhar e desfrutar de atividades ao ar livre, por exemplo de um jardim sensorial, enfim, se seria concedida a possibilidade às mulheres e homens de sair do espaço interior do portentoso edifício. Respondeu que essas pessoas, os demenciados, podiam fugir e perder-se. Portanto, teriam uma ala específica. Retorqui que não precisaria do meu apoio para nada, uma vez que pretende ter paredes novas e um modelo obsoleto de instituição total, no que concerne aos cuidados a prestar aos futuros clientes. Sugeri-lhe a leitura, para aperfeiçoar o edificado, do livro de Erving Goffman “Manicómios, Prisões e Conventos” … SEM NOÇÃO?
2 – As Obras Sociais de Viseu são uma Entidade de Formação certificada pela DGERT. Há alguns anos que organizamos formação especializada, entre outras, na área das demências. Foi-nos pedido um orçamento para a realização de uma ação num concelho vizinho. Pedimos a módica quantia de 40,00€ por duas horas de formação e deslocação das neuropsicólogas (ida e volta, incluía combustível e portagens). Não obtivemos resposta… Ironia do destino, dias depois, fomos contactados por uma senhora que informou que iria dar formação sobre demências no local Y e, como não tinha material, perguntou se lhe poderíamos disponibilizar alguns folhetos, livros… SEM NOÇÃO?
3 – Fomos contactados por uma formadora que explicou à nossa psicóloga que dá muita formação sobre “o Alzheimer” e que gostaria de trazer os seus formandos aos nossos serviços para verem pessoas com Alzheimer… SEM NOÇÃO?
4 – Esta semana, fomos contactados por alguém que quer preparar projetos para o 20 / 30 e fazer “coisas” para os idosos e pessoas com Alzheimer, algo inovador, do género da estimulação cognitiva… Ligámos e perguntámos porque razão nos quer como parceiros. Respondeu que mandou emails para muitos, está a falar com câmaras, procura parceiros, quer investidores, mecenas… Entretanto, perguntou, estávamos a falar ao telefone há algum tempo, quem eu era. Expliquei, trabalho nas Obras Sociais Viseu. Respondeu: “Pois, também já falei com uma pessoa de uma empresa de Viseu que parece que se chama Centro Alzheimer”. Expliquei, se está a referir-se ao Centro de Apoio a Pessoas com Alzheimer e outras Demências (isso mesmo, disse a senhora) é um dos nossos serviços. “Muito bem” (suspirou). Perguntei, por favor, diga-nos o que pretende exatamente, no rascunho que nos enviou não conseguimos entender os seus objetivos e da sua entidade. Responde com uma questão: “Pode-me dizer o que fazem? Sabe, estou a falar com toda a gente, instituições, municípios, consultores…” SEM NOÇÃO?