Relvas
O caso Relvas impressiona-me muito. Um amigo meu, que vive fora do país, diz que tudo isto é sinal de um país de parolos, ou seja, um claro sinal de subdesenvolvimento de uma sociedade em que se presta muita atenção aos títulos e muito menos atenção ao valor intrínseco associado a um título académico. Valor […]
O caso Relvas impressiona-me muito. Um amigo meu, que vive fora do país, diz que tudo isto é sinal de um país de parolos, ou seja, um claro sinal de subdesenvolvimento de uma sociedade em que se presta muita atenção aos títulos e muito menos atenção ao valor intrínseco associado a um título académico. Valor que tem de se traduzir em conhecimento, capacidade de o usar para gerar mais conhecimento, atividade económica, atividade cultural e de divulgação, bem estar social e transformações de todo o tipo.
Obter um grau académico só para o exibir, como status social, ou com ele aceder a lugares na administração pública, ou ainda como forma de justificar algum tipo de competência é típico de uma sociedade doente que liga ao assessório e não ao que realmente interessa, ou seja, a capacidade demonstrada de numa determinada área ser capaz de ser elemento de transformação.
Quando ouço, vejo e leio as várias coisas sobre a “licenciatura” de Relvas, as equivalências sem sentido, a desfaçatez em atribuir créditos sendo subservientes ao poder, a panóplia de ilegalidades e atitudes provincianas, lembro-me de um filme fantástico protagonizado por Vasco Santana em que ele representava um aluno cábula de medicina: “A canção de Lisboa”. Há uma cena no Jardim Zoológico em que o cábula é confundido pelo tratador do jardim com o veterinário que normalmente lá prestava serviço. O cábula, que estava com dificuldades em “enganar” as tias ricas sobre a sua situação escolar, insiste com o tratador para lhe chamar doutor: “Chame-me doutor, homem!”, “Diga alto que eu sou doutor”, e virando-se para as tias perguntava triunfante, “Sou ou não sou doutor?”. Uns segundos à frente, já no papel de falso doutor, percebeu que o Jardim Zoológico lhe pagava 20 escudos por cada animal que ele visse, pelo que arranjou logo um esquema para ver todos os animais do jardim. Viu a Girafa, a foca, os pombos, o elefante e chegou finalmente aos macacos para dizer: “Vocemecê já me deve um dinheirão. 20 macacos a 20 macacos são 400 macacos, com mais 180 macacos…,”, uma data de massa. Não sei porquê mas lembro-me sempre do Relvas quando vejo essa cena. Deixo ao leitor as associações que quiser fazer, e escuso-me de explicar as que eu faço. Parecem-me evidentes. Mas a parte relevante é que esse filme se reporta a uma altura (1933) em que Portugal era reconhecidamente um país atrasado, muito rural, provinciano, onde poucos estudavam e faziam estudos superiores. Nessa altura, ser “doutor” (deveria ser “Dr.”, porque “Doutor” é um doutorado) tinha um enorme impacto social e era, como até há muito pouco tempo atrás, algo que tinha mais valor facial do que intrínseco, isto é, como garantia de capacidade e competência numa determinada área de conhecimento. O que este infeliz caso de Relvas mostra é que se calhar o ano de 1933, e a realidade que representava, não está assim tão longe e este país, apesar de tudo, da revolução, da liberdade, dos milhões da Europa, das oportunidades que teve e que perdeu, não mudou assim tanto. E isso é que é verdadeiramente triste. O Relvas é só um personagem que aparentemente sobreviveu ao tempo e saltou dessa altura para agora. As roupas são diferentes, são de hoje, as marcas caras do relógio, do iPad, etc., são de hoje, mas o software é bem antigo e a maneira de atuar é exatamente a mesma. O que me deixa pasmado não é a “miséria moral” que tudo isso representa. Não. O que mais me admira é que esse “senhor”, vindo do passado, foi ministro de um Governo de Portugal no século XXI. E se calhar vai ser “doutor” com diploma passado pelo tribunal. É que, como tudo em sociedades doentes, talvez os prazos da decência já se tenham esgotado.
(Publicado no Diário As Beiras de 26 de Junho de 2015)