As notícias da saúde chegam-nos doentes, exuberantes de achaques. Não é maleita recente, ligeira, de cura rápida, é moléstia profunda e severa, a exigir tratamentos continuados. A saúde está incapacitada, os músculos mirrados e os ossos quebrados.
A crise que se abateu sobre o INEM era antecipável por quem acompanha estas questões com interesse e regularidade. A falta de 800 técnicos não é de ontem nem de há um mês, não saíram todos em excursão de uma vez só, à Quinta da Malafaia ou ao santuário de Fátima. Tem anos a debandada. E os substitutos não se fazem de atacado, em Molelos ou em Barcelos, por melhores que sejam o modelo, o barro e as mãos do artista.
O desinvestimento nos recursos humanos na saúde e na educação é uma realidade recente que triturou a qualidade dos serviços prestados e aniquilou a sua capacidade de resposta. Foi o preço alto que se pagou para se alcançar o equilíbrio das contas públicas. O mantra dos políticos de hoje, amarrados ao espartilho da moda, adorando-o como à bandeira soberana. Não haja ilusões sobre esta evidência: as contas certas não foram o resultado da inspiração de sábios e eruditos, foi um sucesso que saiu do coiro do tuga anónimo e desconhecido. O mártir que vai para a fila de madrugada à espera de uma consulta incerta, do herói que morre por não haver socorro, do desgraçado que para dar aulas dorme no carro, do excluído que desacredita da escola pública por não ter professores para os seus filhos. O incensado equilíbrio das contas não é produto da imaginação de um qualquer feiticeiro, apesar de todas as patranhas e pantominices que os áugures oficiais e oficiosos nos tentam impingir. Alcançou-se à custa das cativações – a regra que devia ser excepção – que, com suposta e pérfida discrição, garroteou a resposta do Estado, da não escrutinada tirania discricionária das Finanças, de uma Administração Pública exaurida, em estado de pré-falência, do desleixo com as forças de segurança, do abandono a que se votaram as Forças Armadas, da degradação dos serviços públicos, tudo de uma forma tão séria que os seus efeitos se vão repercutir na próxima década.
No INEM empurrou-se o problema com a barriga, adiando, adiando, a fazer-se de conta que a questão não existia, quem viesse mais tarde que fechasse a porta, sabendo-se que os maiores responsáveis pela desgraça, os autores das malfeitorias, de Passos a Costa, já estariam bem instalados na vida, quando as labaredas que atearam reduzissem a cinzas o que antes era bom. Um abriu a porta à sangria, o outro não se preocupou em estancá-la, até a agravando. Vieram ministros e secretários de estado sem peso político, que fizeram dos cargos trampolins para outros voos, premiados pela incapacidade de endireitarem o que estava torto e deixarem obra que se visse.
Sabia-se há muito que a bomba ia rebentar, só não se sabia quando. Apesar de ter havido um aumento anual de cerca de 100.000 contactos telefónicos para o INEM, o número de técnicos que atendem as chamadas, avaliam a situação e accionam os meios de socorro diminuiu. Verdade! Talvez nenhum dos crânios que passou pela pasta da Saúde se tenha lembrado de que sem ovos não se fazem omeletes. Sabendo como aqueles profissionais são essenciais a uma boa resposta, fácil se torna entendermos uma das razões da miséria instalada e agora publicada. A acrescentar a este pobre cenário, há as viaturas antiquadas, com sérios problemas de manutenção, rupturas no pessoal especializado, turnos por assegurar por falta de recursos humanos, ausência de helicópteros, concursos aleijados e mal amanhados. Tudo se deixou arrastar, sabendo que a onda gigante não iria parar.
O INEM enfrenta problemas sérios e graves, resultado de erros flagrantes, de cegueiras tontas, vindos de um passado remoto e recente. E de outros, no presente, fruto da incompetência dos seus dirigentes: não ter definido os serviços mínimos no dia em que a greve provocou o caos no socorro, estando menos de 10 pessoas a atender chamadas de emergência de todo o país, é revelador de má gestão e de umbigo crescido. E tudo passaria por entre os pingos da chuva, não fosse dar-se o caso de, em pouco mais de uma semana, haver já 11 mortes associadas a atrasos na prestação de serviços de emergência médica, a demoras no socorro, provocadas por tempos extraordinários no atendimento do 112, de cerca de hora e meia.
Como quase sempre acontece neste país, é preciso morrer gente para que se inquietem as almas e os governantes se preocupem com as falhas, manifestando intenções, dando certezas, com ar contristado e piedoso, convertidos à fé dos justos. Num ápice, anunciam soluções, que serão sempre remendos e remedeios, desculpando-se com as heranças – como se fosse possível desconhecê-las – e insistindo no tempo de que precisam para porem a casa em ordem, subtraindo-se desde logo à responsabilidade, considerando o expectável curto horizonte temporal de permanência na pasta. Por bem menos – a morte de uma paciente – se demitiu Marta Temido, tomando para si as dores que eram de outros. Depois, há as circunstâncias inopinadas que agravam o problema e acentuam as dificuldades.
Igual inabilidade só encontra paralelo na sua colega de caminhada: a cinzenta ministra da Administração Interna, coleccionadora de azares e lapsos.
Os líderes partidários, na hora das escolhas, teimam em desprezar os conselhos daqueles que, avisados, lhes vão soprando aos ouvidos o óbvio: nem sempre os bons académicos e os melhores gestores dão bons políticos. E depois dá nisto: na tômbola gigante da banha-da-cobra, saem-nos governos atamancados, retratos de famílias bafejadas pela sorte, comissões fabriqueiras de currículos moles. E porque um mal nunca vem só, acumulam a pobre condição um cemitério de ministros com a triste circunstância de um deserto de ideias.
PS – Os democratas norte-americanos já encontraram uma razão para o seu rotundo fracasso e para o “poker” de Trump – ganhou a presidência, o Senado, a Câmara dos Representantes e o voto popular: estiveram muito focados nas elites e negligenciaram o povo anónimo. Posto isto…aprendamos.