Comecei a escrever regularmente em jornais locais há 28 anos, quando publiquei, no Jornal Via Rápida de 9.06.1994, um artigo de opinião com o título “Deixem-nos estudar!” Tratava-se de uma referência paródica ao desabafo “Deixem-me trabalhar!” de um Cavaco Silva entediado com o normal escrutínio democrático da oposição. Com isso, pretendia traduzir o sentimento dos jovens estudantes em luta contra as provas globais que mais não eram do que uma forma de afunilamento do acesso à Universidade, criando uma escola cada vez mais elitista, decretadas por uma ministra da Educação sem qualquer noção de serviço público. Esta defendia, por exemplo, que tinha de ser a iniciativa privada, a par das autarquias, a investir no alargamento da rede do ensino pré-escolar. Em defesa da ministra, Vasco Graça Moura, um dos mais prestigiados intelectuais da direita (PSD), comentou: “A Universidade destina-se a formar as elites de que o país precisa e não as hordas indiferenciadas que saem dos liceus quase sem saber ler nem escrever”. E o director do jornal “Público”, Vicente Jorge Silva, chocado com a imagem de um estudante que numa manifestação baixou as calças e apontou o rabo ao poder, considerou que se estava perante uma “geração rasca”. Ao que os estudantes replicaram, mais tarde, que eram, não uma “geração rasca”, mas sim uma “geração à rasca”. E tinham razão! Como têm razão, hoje, os jovens que se manifestam, de forma mais ou menos irreverente, contra a inoperância dos governos perante o desastre climático que ameaça o futuro da humanidade, não daqui a mil anos, mas já amanhã, daqui a poucas décadas, logo, pondo em risco o seu próprio futuro, ou seja, a sua vida.
Ora, representantes “adultos” de 200 países reunidos no Egipto, de 6 a 20 de Novembro, fingindo preocupar-se com a emergência climática e a crise ambiental, não conseguiram, durante duas semanas, chegar a um compromisso para a mitigação (redução) dos gases de efeito de estufa e o progressivo abandono dos combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás natural). Só isso poderia contrariar o aquecimento global que já subiu 1,2º C (por comparação com os níveis pré-industriais), bem perto do limite de 1,5ºC, estipulado nos Acordos de Paris (COP 21, 2015), causador dos cada vez mais frequentes e violentos furacões, secas, inundações (já há ilhas no Pacífico, como Tuvalu e Fiji, em risco sério de submergirem completamente dentro de uma década, com o aumento do nível do mar e populações a serem realojadas) e outros desastres naturais, para além de doenças, nomeadamente, do aparelho respiratório.
Contra esta irresponsabilidade de quem tem nas mãos o destino do nosso planeta, previsível numa cimeira em que participaram mais de 600 lobistas (grupos de interesse) de combustíveis fósseis, os jovens mobilizaram-se e manifestaram-se em cidades por todo o mundo (já que no local da COP 27, em Sharm el-Sheikh, as manifestações foram proibidas pela ditadura de al-Sissi que já fez 60 mil presos políticos, apesar do apelo de 15 escritores galardoados com o prémio Nobel a reivindicar a sua libertação). São esses milhões de jovens que tentam chamar à razão os adultos que se engalfinham “infantilmente” em guerras irresponsáveis pelo controlo de zonas de influência estratégica e de saque de matérias-primas, causando o caos na Europa, aumentando a fome em todo o mundo e arriscando uma escalada bélica que poderá levar à aniquilação nuclear de uma boa parte da humanidade.
Por isso, foi bonito ouvir o director da Escola Artística António Arroio, responder a um jornalista que lhe perguntou se iria chamar a autoridade para desalojar os estudantes que ocupavam a escola, que ele era a autoridade e não podia estar contra “jovens que querem um mundo melhor”.
Já o mesmo não se pode dizer da atitude indigna do director da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa que chamou a polícia. Esta deteve quatro dos estudantes que ali se manifestavam pacificamente pela descarbonização do planeta.
Afinal, estes jovens não fazem mais do que lutar pelo DIREITO À VIDA! Direito à vida que o internacionalmente reconhecido especialista em alterações climáticas, Filipe Duarte Santos, professor catedrático jubilado da Universidade de Lisboa, investigador em física nuclear teórica, astrofísica e ciências do ambiente, presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, no seu livro “Alterações Climáticas” (FFMS, 2021) enuncia desta forma: “Há um consenso crescente de que as alterações climáticas constituem um dos maiores riscos para os direitos humanos no século XXI, dado que afetam o direito à vida e o «direito a um padrão de vida capaz de assegurar a saúde e o bem-estar de si mesmo e da sua família, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis», conforme consta no artº 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.”
Como disse Saramago, no seu discurso em Estocolmo (se me permitem outra citação): “Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aqueles que efectivamente governam o mundo: as empresas multinacionais e pluricontinentais, cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos. (…) Tomemos então nós, cidadãos comuns, a palavra. Com a mesma veemência com que reivindicamos direitos, reivindiquemos também o dever dos nossos deveres. Talvez o mundo possa tornar-se um pouco melhor.”
Pois bem, é esse dever de resistir e exigir a quem tem o poder, que os milhões de jovens por todo o mundo, incluindo Portugal, estão a exercer. Alguns, como o grupo “Just Stop Oil”, com a “violência” do rio que é comprimido (violentado) pelas margens, como no poema de Brecht, atirando sopa ou polpa de tomate a obras de arte expostas em museus. Uma grande parte dos órgãos de comunicação social, ao noticiarem estas acções, obliteraram o “pormenor” que faz toda a diferença: todos os alvos, quadros de pintores famosos (Van Gogh, Monet e Vermeer), estavam protegidos por placas de vidro, não tendo danificado qualquer um deles. A ideia, afirmam estes activistas, era comparar a beleza e a importância das obras de arte à beleza e importância vital do nosso planeta. Se a ideia foi chocar-nos, conseguiram! Mas o facto de muitas pessoas não se terem apercebido daquele “pormenor” essencial levou-as a comparar estas acções à selvajaria dos talibã ou do ISIS que destruiram obras de arte, património da Humanidade. Tal equívoco, só por si, deve fazer-nos reflectir sobre a validade deste tipo de activismo, ainda por cima quando vivemos num tempo em que a arte e a cultura estão tão desvalorizadas. Mesmo em Portugal, onde se vai menos aos museus do que na maior parte dos países europeus, o governo aceita o ditame da NATO de subir o orçamento para a Defesa para quase o dobro do orçamento para a Cultura.
E, no entanto, convenhamos que de nada nos valerão as obras de arte que nos alimentam o espírito e nos caracterizam como humanos, se não evitarmos o “inferno climático” que levará à extinção da Humanidade. A não ser para eventuais extra-terrestres aterrarem um dia neste planeta, outrora azul, e descobrirem no meio das ruínas que, afinal, já tinham existido aqui uns seres criativos e inteligentes, apesar de auto-destrutivos. Talvez um futuro caso de estudo inter-galáctico!