Os pouco límpidos Jogos Olímpicos e a massificação do desporto

“Estudos comprovam que as crianças e jovens que praticam actividade física têm melhor desempenho académico (...), melhor integração social e melhores interacções sociais”

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  • 17:16 | Quinta-feira, 19 de Setembro de 2024
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O OLÍMPICO RURAL

Aos setenta anos, mirrado

Como um tronco de videira


Treina a fome e os cansaços

No ginásio aberto de sol a sol

Com a vitamina duns bagaços!

Os músculos dos braços

Formados só por pele dura

Enrugada, escura

Colada aos ossos

Do corpo mecânico dum atleta

Alimentado a broa e tremoços

Sem pulsações controladas

Batendo recordes incríveis

Desde a infância

Na sua maratona sem meta

nem distância!

Acaba sem pódium

A sete palmos do fundo

O maior atleta do mundo!

O campeão “bestial”

– O nosso homem da jorna

Aqui em Portugal!…

                            

                            Ricardo Sandro

Este poema de Ricardo Sandro, pseudónimo literário de José Madeira, vem-me à memória sempre que surge uma nova edição dos Jogos Olímpicos (J.O.).

O viseense José Madeira, que nos deixou em 1992, para além de um inspirado poeta popular (“à boa maneira dos jograis medievos”, como escreveu Augusto Fernandes), e investigador autodidata da história do desporto e da cultura viseense do século XX, foi também campeão de lançamento de disco e treinador de atletas, como Anacleto Pinto, campeão nacional de Corta-Mato que seria maratonista olímpico.

José Madeira dedicou toda a vida ao desporto, agraciado pelo Governo e pelo município que atribuiu o seu nome ao campo de treinos do Fontelo, mas não deixou de criticar a adulteração do espírito desportivo que leva  países a utilizar o desporto como marketing para promoverem a sua superioridade sobre os outros, como uma indústria onde tudo se compra e vende, atletas, árbitros, adeptos, informação, ainda que o preço seja a violência, a corrupção, o dopping e a destruição física dos atletas a curto prazo. Ele defendeu o “fair play”, o espírito desportivo de respeito pelo adversário, subjugando a competição sem princípios à superação de si-próprio por cada atleta, sob o lema olímpico “mais rápido, mais alto, mais forte!”

Outra opinião insuspeita é a de José Manuel Meirim, professor de Direito do Desporto, que no Público do passado dia 30 criticou a aprovação pelo Comité Olímpico Internacional (COI) da realização dos Jogos Olímpicos Electrónicos, organizados pela Arábia Saudita, sem concurso (“esportwashing” com petróleo), e citou José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico de Portugal, falecido em 11.08.2024, que escreveu na Visão de 25.07.24: “O olimpismo é hoje um negócio puro e duro, vendido aos patrocinadores, com muito dinheiro distribuído pelos comités olímpicos nacionais, e, portanto, está completamente subjugado ao neoliberalismo e ao negócio. E o exemplo mais gritante disto é essa ideia peregrina de integrar os desportos electrónicos no sistema das práticas desportivas.”

Já em 1992, o sociólogo Pierre Bourdieu, numa comunicação em Berlim (publicada abreviadamente em “Sobre a Televisão”, Celta Editora, 1997), denunciava: “o Comité Olímpico Internacional progressivamente convertido  numa grande empresa comercial com o orçamento anual de 20 milhões de dólares, dominada por uma pequena camarilha de dirigentes desportivos e de representantes de grandes marcas industriais (Adidas, Coca-Cola, etc,) que controla a venda dos direitos de transmissão (avaliados, para os Jogos de Barcelona, em 633 mil milhões de dólares) e dos direitos de patrocínio, bem como a escolha das cidades olímpicas; as grandes companhias de televisão (sobretudo  americanas), em concorrência (à escala da nação ou da área linguística) em torno dos direitos de retransmissão; as grandes empresas multinacionais (Coca Cola, Kodak, Ricoh, Philips, etc.) em concorrência em torno dos direitos mundiais sobre a associação em exclusividade dos seus produtos com os J.O. (enquanto “fornecedores oficiais”); e, por fim, os produtores de imagem e de comentários destinados à televisão, à rádio ou aos jornais (…) “A produção da imagem televisiva (…) obedecendo à lógica do mercado (…) oferecida às horas de grande audiência nos países economicamente dominantes”.

 

No Le Monde Diplomatique de Maio 2024, Philippe Descamps desmistifica as alegadas virtudes dos J.O. de Paris: “o dinheiro pulverizou o amadorismo em todas as disciplinas; as tréguas  são substituídas por sanções de geometria variável – contra a Rússia, mas não contra Israel -; o COI, órgão supra estatal é um dos mais opacos; impactos económicos efémeros justificam enormes despesas públicas; as restrições impostas em nome da segurança esmagam as liberdades; as vociferações patrioteiras dos comentadores aniquilam qualquer espírito de fraternidade entre os povos…E cita vários estudos que demonstram que “A promoção do desporto de elite, por si só, não faz aumentar a prática de actividade física nos jovens ou nos adultos” (…) celebra o culto do corpo, da vitória. Encoraja ritmos infernais, minimiza feridas crónicas, ou mesmo a dopagem, incompatíveis com a dimensão lúdica e colectiva em que assenta o desporto de massas” [que promove o prazer, o bem-estar e a auto-estima].

Como escreveu Vítor Santos, embaixador do Plano Nacional da Ética no Desporto: “Estudos comprovam que as crianças e jovens que praticam actividade física têm melhor desempenho académico (…), melhor integração social e melhores interacções sociais”. Mas “aumentam as pressões de ‘ganhar a todo o custo’ e o prazer pela prática desportiva esmorece.” E cita estudos dos EUA e da Suécia que concluíram que  “mais de 50% dos jovens  deixam o desporto por volta dos 13 anos por se sentirem defraudados nas expectativas que lhes foram criadas em criança e pelas pressões, enormes, que sofrem. Ao aperceberem-se que as perspectivas de serem atletas de alto rendimento são poucas, optam pelo abandono. Deixa de ser divertido, deixa de valer a pena”. Atribui a culpa também à “precoce e sempre perigosa criação de ídolos, treinadores que só têm sede de resultados, quadros competitivos pouco interessantes e pais armados em empresários”. “As competições realizadas até à categoria dos sub-11 tendem a deixar de ter resultados/classificações. Não faz sentido jogar para ganhar, para haver um campeão. As crianças querem jogar com alegria e empenho, (…) Ganhar é um objectivo importante, mas não pode tornar-se um fim em si mesmo. (..) A criança quer jogar!

 

Conclusão: Menos “desporto” de bancada ou de sofá e mais prazeroso exercício físico. Colocar o desporto dependente da propaganda da Coca Cola ou da “Fast Food” é incentivar a obesidade pandémica entre adultos e jovens. “Mente sã em corpo são”, como escreveu o poeta romano Juvenal há quase dois mil anos, é o maior objectivo do Desporto. Um desporto massificado, democratizado, fonte de saúde física e psíquica, de sociabilização e amizade entre pessoas e povos.

 

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Publicado em Opinião