Até condenação, há sempre a presunção de inocência, mas há situações que, pela sua exposição límpida e cristalina tornam aquela figura jurídica uma simples formalidade, um lugar-comum que o bom senso logo arreda.
Vivaço, apesar do seu ar abrutalhado, que as altas responsabilidades políticas não escondem, e tornam até mais evidente, pelo contraste com os vernizes e os ademanes mais em voga, escolhia os voos nocturnos, quando a vigilância era mais frouxa, facilitando a ladroagem, na zona de circulação das bagagens.
A saga terá começado em Outubro e o dito senhor terá desviado 19 malas, sendo que 13 foram, entretanto, recuperadas.
A queixa de um passageiro pôs a polícia de atalaia, encontrando na revisão das imagens gravadas a pista para melhor chegar ao autor dos desvios, que exibia movimentos corporais suspeitos, confirmando a ausência de vigilantes.
Recorrente no crime de furto, foi monitorizado pelas autoridades durante dois meses, tempo suficiente para que não restassem dúvidas sobre o seu comportamento marginal.
Homem de expedientes e de espírito empreendedor, cedo percebeu que havia que encontrar forma de colocar a mercadoria no mercado. E logo tratou de dar escala à sua segunda ocupação, criando uma empresa familiar, que escoava os produtos, rentabilizando o negócio. E porque os seus nulos afazeres parlamentares lhe davam tempo para pensar, urdiu o plano simples de criar uma conta – Miguelarruda84 – na plataforma “”Vinted”, de venda de roupa usada, de homem, senhora e criança. Modesto, e porque nada investindo, era tudo lucro, optou por valores que batiam os preços da concorrência.
O negócio florescia, e o espaço do seu gabinete era exíguo para arrecadar tantas malas encostadas à parede, e encomendas pousadas no parapeito da janela.
Miguel Arruda foi vítima do vício e da ambição. Constituído arguido, por furto qualificado de malas no aeroporto, aguarda, com baixa médica, o levantamento da imunidade parlamentar, para responder perante a justiça, já na qualidade de deputado não inscrito.
Fosse Arruda um cidadão um simples cidadão, e nem uma linha eu escreveria sobre o seu comportamento, mas, deputado, por dever de cidadania, justifica umas linhas, breves, mas genuínas de sentimento misto de profunda reprovação e indignação.
Uma repugnância incomoda-me:
1. Acontecer este escândalo num partido que diz querer limpar Portugal da corrupção, que faz a apologia permanente do exemplo, da superioridade moral, o arauto da ética, casa de cidadãos impolutos, santuário da seriedade, é, no mínimo, surreal, o bastante para suscitar risinhos de escárnio e mal-dizer. É certo que em todos os partidos há ovelhas ranhosas, más companhia e tipos malcriados, arrivistas e penetras. Mas esta nódoa, apesar de os bravos companheiros logo a terem sacudido, como se fosse sarna e lepra, ter manchado um pano que se apregoa alvo e impoluto, que faz alarde da virgindade e das lonjuras do pecado, é muito mau, capaz de destapar o oculto. Um nojo baralha-me.
2. Um deputado, constituído arguido por crimes deste tipo, e de outros ainda mais graves, não deveria, por razões de decência, poder gozar do privilégio de se sentar no Parlamento, até trânsito em julgado da sentença. A figura do deputado não inscrito devia valer apenas para divergências insanáveis com o partido de origem. Em tudo o mais, é excesso leviano. Que se mudem as leis, mas gente com este cadastro não pode representar eleitores, e muito menos a Nação. É um abuso, que a democracia permite, mas a razão repudia e o bom senso rejeita. Que os deputados, tão zelosos em criar legislação que os protege, arrepiem caminho, banindo do espaço solene os que desonram as vestes do hemiciclo. Quem se dá a este triste espectáculo de andar a esquadrinhar malas e malinhas para as subtrair aos seus proprietários, trocando os conteúdos numa casa de banho, não pode sentar-se em São Bento. É conforto a mais para indigentes que não o merecem.
A não ser assim, a democracia, mais cedo do que tarde, morrerá às mãos de quem não sabe gozar das liberdades que ela permite.