Obrigado Mário
“Quando a erva crescer em cima da minha sepultura, Seja este o sinal para me esquecerem de todo. A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela. E se tiverem a necessidade doentia de “interpretar” a erva verde sobre a minha sepultura, Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural” Alberto Caeiro. […]
“Quando a erva crescer em cima da minha sepultura,
Seja este o sinal para me esquecerem de todo.
A Natureza nunca se recorda, e por isso é bela.
E se tiverem a necessidade doentia de “interpretar” a erva verde
sobre a minha sepultura,
Digam que eu continuo a verdecer e a ser natural”
Alberto Caeiro.
Cresci a ver alguns combates de Mário Soares, numa altura em que nas campanhas eleitorais e nos comícios as vedetas eram os oradores e não grupos de música e efeitos especiais mais ou menos higiénicos. Uma altura em que os cidadãos, não caídos na artimanha que (intencionalmente?) os adormece, ainda acreditavam verdadeiramente que podiam mudar o seu país e se interessavam participando activamente na vida política, independentemente da sua formação e “capacidade”. Uma altura em que os actores eram, a par de Soares, Cunhal, Sá Carneiro e Freitas do Amaral, homens de craveira intelectual e cultural que, à distância de uns bons anos, impressionam qualquer cidadão que não tenha o rei na barriga.
Mário Soares era agnóstico e, logicamente, não acreditaria em anjos ou demónios. Não há gente santa ou divina e quem o exige aos outros, Soares incluído, é anjinho (ou então parvo). Ele próprio terá muitos defeitos que se lhe apontem mas Portugal deve-lhe o reconhecimento e a honra que se deve prestar aos poucos que são capazes de demonstrar coragem, de forma consciente, para lutar contra os poderes opressores instalados.
Dado a raridade desses Homens é importante louvar, na hora da despedida, um dos que souberam liderar vontades para almejar a liberdade. Um homem que não se contentou em trocar um totalitarismo pela ameaça de outro. Algo que aconteceu em tantas e tantas outras paragens.
Contribuiu, naturalmente em conjunto com tantos outros, para algo que agora, tantos nem valorizam, dado o seu carácter permanente e – ilusoriamente – eterno. Não há gente santa. Não há gente divina. E quem o exige aos outros é anjo (ou parvo).
Quantos como Mário Soares, um “burguês” de uma família sem dificuldades económicas, escolheram sair da sua “zona de conforto” e lutar contra uma ditadura que aplicava aos portugueses, entre outras coisas, uma das maiores privações que se pode aplicar a um povo? Mário escolheu lutar contra as injustiças duma ditadura que inibia os portugueses de se expressar, onde mais de 40% das pessoas não sabia ler nem escrever, que explorava povos aquém e além-mar. Ele que nem era, de todo, dos mais afectados. Lutou e arregimentou vontades para lutar contra um regime que deixava o seu povo em diversas misérias e com fome (como é mesmo aquela da sardinha que dava para quatro?).
Com a humanidade que lhe era característica e com injustiças naturalmente cometidas, lidou com um lastro de 40 anos de ditadura, 13 de guerra civil/colonial/libertação, de um regime que se limitou ao autismo do “orgulhosamente sós”, que isolou Portugal e que, enganou e abandonou milhares de colonos (que vá-se lá saber porquê tiveram de fugir dos países onde estavam). Um “estado novo” que artificializou uma guerra invencível, que mais não era do que empurrar com a barriga problemas para um futuro obviamente conhecido e inadiável. Ajudou a resolver problemas num contexto de guerra-fria e com um regime democrático construído à pressão, num país onde as raízes e tradições de participação democrática há muito tinham sido metidas na gaveta, algo que que ainda hoje tenuemente podemos observamos.
Mário ajudou a legar-nos um país imperfeito mas incomensuravelmente melhor daquele onde nasceu e isso, também a ele se deve. Um país onde outras coisas podemos, sem medo de represálias, insulta-lo de forma abjecta e, muitas vezes, de forma não fundamentada. Um país onde esse direito é tão natural para tanta gente que nem nos damos conta que o mesmo tenha sido conquistado e julgamo-lo brotando das insondáveis obras do acaso.
Devemos-lhe tanto por, aparentemente, tão pouco.
Sem idolatrias e com naturalidade, Obrigado Mário.