O país das conveniências

O que vem da direita é desprezado pela esquerda, o que vem da esquerda é desvalorizado pela direita. Tudo é rotulado. O que não traz o carimbo dos compadres, vai para o caixote do lixo. Com o devido respeito, parecem miúdos a fazerem patifarias do pior, para ficarem com o berlinde. É estranho que só nas regalias e benesses próprias se encaminhem para fáceis e rápidos acordos.

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  • 12:52 | Segunda-feira, 04 de Dezembro de 2023
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Os extremismos não crescem por acaso. Os eleitores não se radicalizam por acaso. A intolerância não alastra por acaso. O descontentamento não aumenta por acaso.

Não nos revoltemos contra os extremos, nem diabolizemos essa realidade que está aí à porta. Pensemos antes no que fizemos, durante décadas, para a evitar. Pouco, ou mesmo nada. Somos nós, os que temos a democracia como um activo inalienável, e que, apesar desse apego, elegemos políticos que, com os seus actos e decisões, contribuem para a sua conspurcação, somos nós os responsáveis pelo fundamentalismo que, não nos iludamos, vai continuar a medrar e a ter cada vez mais votos nas urnas.

Continuam os nossos políticos a discutir ideologia, fazendo bem melhor se discutissem causas e gastassem tempo a encontrar respostas. No teatro político, há ideologia a mais e respostas a menos. É na vergonhosa ausência de respostas eficazes e duradouras para problemas concretos e arrastados que encontramos a razão dos fundamentalismos e do discurso do ódio. O descontentamento encontra nessa grave falha fermento e adubo para crescer.


Se os responsáveis centrassem a sua acção nas causas sociais que afectam a população, os extremos não tinham como existir. Ou morreriam à nascença, ou cresceriam raquíticos, com fim anunciado. Causas identificadas, e que 50 anos de democracia, com os cofres cheios de dinheiro europeu, já deviam ter uma solução, pelo menos encaminhada. Mas não.

O que vem da direita é desprezado pela esquerda, o que vem da esquerda é desvalorizado pela direita. Tudo é rotulado. O que não traz o carimbo dos compadres, vai para o caixote do lixo. Com o devido respeito, parecem miúdos a fazerem patifarias do pior, para ficarem com o berlinde. É estranho que só nas regalias e benesses próprias se encaminhem para fáceis e rápidos acordos.

Em vez de canalizarem orçamento para a habitação, para a erradicação da pobreza, para a saúde, para a educação, para a reforma do sistema de pensões, acabando com as de miséria, para os salários baixos, em vez de pararem com os impostos desumanos, com a carestia de vida, com os lucros astronómicos da banca, das seguradoras e das energias, com a fuga de talentos para o estrangeiro por a pátria lhes ser madrasta, discutem a TAP, o novo aeroporto, o TGV, e, dando ares de grandeza sem fundos, rebentam de orgulho tolo com a Web Summit e a organização repartida do Mundial de futebol.

Projectos desta grandeza, com 2 milhões de portugueses em risco de pobreza? Não, preferia que não. Preferia um país mais coeso, um país em que a pobreza fosse residual, um país em que não houvesse podridão, miséria e corrupção à farta.

Temos políticos megalómanos, vaidosos, egoístas, que olham apenas para a ponta do seu nariz. É desse tamanho a dimensão do seu mundo. Estão as prioridades invertidas, aposta-se na macro política, nos grandes investimentos, sorvedouros dos dinheiros públicos, que podem dar uma boa imagem do país lá fora, esquecendo-se o povo que não há meio de ver a vida melhorar.

Sim, a dívida diminuiu, há um excedente orçamental e parece que a inflação está a baixar, mas isso não chega aos bolsos dos portugueses, que continuam a ver a sua vida a andar para trás.

Escasseiam as soluções micro, direccionadas para problemas reais. Não as havendo, desprestigia-se a política, vêm os ódios e os rancores, e vai haver quem, com sucesso, se aproveitará do desespero e ocupará um espaço que está livre.

A continuarmos assim, e, pelo andar da carruagem, assim será, aos extremos bastará fingirem-se de mortos, para que uma mão-cheia de votos lhes caia no bornal, engordando-lhes a representação parlamentar.

Culpados? Todos nós, que elegemos quem promete o que não faz, encontrando sempre desculpas para a falta da palavra dada.

A classe política que, parecendo viver num limbo e a gozar de uma quase impunidade, trata o povo como se ele fosse burro de carga e aguentasse vergastadas no lombo.

Sejamos sérios, o que nos trouxe até aqui foram os truques e as batotas, a que nós, com generosidade cristã e cegueira partidária, fomos fechando os olhos.

Acomodámo-nos, por razões várias, às conveniências que as alternâncias foram apresentando como sagradas. Tomámos como cordeiros os lobos da política. Demos conta tarde das raposas no galinheiro. E agora não há batidas que dêem cabo dos animais do monte.

Abascal, em Espanha, Le Pen, em França, Meloni, em Itália, Orbán, na Hungria, Gauland, na Alemanha, Wilders, nos Países Baixos, no mesmo espaço europeu, e Milei, na Argentina, sem contar com os tristes exemplos de Trump e de Bolsonaro, não são figurantes da história da Branca de Neve e dos 7 anões. São personagens reais.

Uma manhã, por cá, acordaremos com as réplicas destas lideranças. Será o dia dos espelhos. Amargurados, rasgar-nos-emos em lamentos, e choraremos os excessos, bateremos à porta da revolução, e ninguém a abrirá. Está tudo morto ou envelhecido, restando as páginas dos jornais para nos lembrarem do dia das utopias.

Façamos todos um “mea culpa”, por acção ou omissão, por fazer ou por deixar andar, por ver e calar. Mas, pelo que leio e ouço, não mudámos nada. Os líderes continuam inchados, balofos, convencidos. Beneficiados com poções mágicas, são esclarecidos e sábios. A classe política é uma classe à parte, iluminada e benfazeja. Pelos actos e pelos dizeres, pelo modo como se passeia no meio da desgraça, autocrismou-se assim. Só pode. Infelizmente, e ao contrário do que quer fazer crer, não goza de uma autoridade merecida, junto da generalidade dos portugueses.

Sim, tivemos culpa. Depositámos nela esperança e fé, e os agentes políticos, sem mandato para a sua destruição, desfizeram-nas em pó e cal. E, do lado de lá, alimentando-se dos falhanços do regime, como de pão para a boca, há quem, com a mesma legitimidade, sorria com estes recorrentes erros, esperando pela sua oportunidade, agitando doses de esperanças e volumes de ética, enquanto o tempo não chega. Fica sempre bem.

Do lado de cá, os cinquentões barafustam, intitulando-se os herdeiros da revolução, como se isso fosse caução de alguma coisa. Dá para rir. Uma cura de humildade e temperança recomenda-se e vinha a calhar. Uma regeneração, também. E gente para isso, há?

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Publicado em Opinião