Bem sei que muitos leitores já devem estar fartos de ler artigos de jornais e comentários nas redes “sociais” sobre o beijo de Rubiales, presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), na boca da jogadora Jenni Hermoso, durante a entrega da taça do Campeonato do Mundo de Futebol Feminino, mas não posso deixar de lavrar a minha indignação perante alguns artigos de opinião e crónicas de pessoas com influência nos “media”, tentando justificar ou atenuar um acto verdadeiramente condenável.
O defensor de Rubiales mais famoso a nível mundial foi Woody Allen, que, em entrevista ao El Mundo, lamentou a condenação daquele ao desemprego: “Nem a beijou num beco escuro, nem a estava a violar, foi só um beijo e ela era uma amiga. Que mal é que isso tem?” Fraca testemunha abonatória, quando o realizador foi acusado há cerca de trinta anos, pela própria filha adoptiva (dele e de Mia Farrow), Dylan Farrow, de ter abusado sexualmente dela quando tinha apenas sete anos.
O realizador nega, mas apesar da investigação de uma equipa hospitalar não ter encontrado provas, o filho biológico, dele e de Farrow, Ronan Farrow, jornalista, apoia a versão da irmã. Por isso, na passada segunda-feira, Woody foi vaiado por críticos e manifestantes ao chegar ao Festival de Veneza, onde, no entanto, o seu talento cinematográfico mereceu uma grande ovação após a exibição do seu novo filme.
Entre nós, o artigo de Miguel Sousa Tavares, no Expresso de 1.09.23, vai mais longe na vitimização: “(…) Rubiales vai a caminho do cadafalso, expurgado de entre a gente civilizada pela Europa dos valores, a mesma que abandonou as mulheres do Afeganistão à barbárie talibã, e abandonado à sua merecida sorte pela UEFA e pela FIFA (…)”. Enfim, demagogia barata! Na mesma onda foi João Lopes, o conhecido jornalista e crítico de cinema, que, na sua coluna no D.N. do dia 3, usa expressões como “nova ditadura moral”, “fogueira de virtudes em que Rubiales será reduzido a cinzas”, pela “opinião pública”, essa “multidão obscena, sem pensamento”; “histeria”, “mediatização pueril do #MeToo (…) em que a noção de vingança contra o colectivo dos homens funciona como lei implícita”; “tempestade mediática”, em que “no limite, cada homem é apenas um violador potencial”; “potencial demonização de todos os homens”.
Dois exemplos de uma série de artigos de defesa do “macho ibérico”, em que o denominador comum é a culpabilização da vítima, na sequência da cobarde defesa de Rubiales, dizendo que o beijo foi consensual, recorrendo aos vídeos postos a circular, mostrando Jenni a abraçar Rubiales, levantando-o do chão, ou as jogadoras no balneário a brincar com a cena do beijo, e, sobretudo, com o argumento mais ignóbil: Hermoso não repudiou Rubiales no momento do beijo. Ou seja, num momento único da vida das jogadoras, em que tinham acabado de conquistar a taça do Mundo, queriam que Jenni quebrasse a emoção e a alegria que sentia dando uma estalada no presidente da RFEF, ou que as jogadoras estragassem a sua festa reagindo negativamente. Como se as mulheres não tivessem aprendido, ao longo dos séculos, a resistir ao assédio sexual nos locais de trabalho por parte de superiores hierárquicos, com jogo de cintura, à defesa, silenciando a sua aversão. Só recentemente, movimentos como o #MeToo, na sequência de décadas de lutas feministas, deram um impulso global à denúncia destes casos de abusos sexuais, em várias áreas, do cinema às universidades, passando pelo desporto.
Graça Castanheira, realizadora, descreve, num artigo no Público do passado dia 3, a reportagem de 2021 “Romper el silencio: la lucha de las futebolistas de la selección”: “Nela se vê o antigo treinador espanhol Ignacio Quereda a beliscar e beijar jogadoras” e a “luta do painel feminino para que o treinador fosse substituído”, por “abusos repetidos, com insultos e humilhações, em público e em privado”. Quereda foi mantido durante 27 anos à frente da selecção nacional. Em 2015 conseguem que seja substituído por Jorge Vilda, “apesar de existirem várias mulheres posicionadas para ocuparem o cargo de treinadora”. “E a história repete-se: Vilda persiste na exigência de que as jogadoras deixem as portas dos seus quartos abertas durante as residências de treino”. “A equipa organiza-se de novo: exigem portas fechadas, melhores condições de trabalho e de repouso, fisioterapeutas, nutricionistas e preparações consistentes”. Chegado a presidente da federação, Rubiales atende as exigências, “mas em troca mantém Vilda como treinador, que acumula com o cargo de director desportivo”. “Quando o presidente da federação aparece fora de campo – e fora de si – a celebrar a equipa a que preside com o treinador, rouba alegria e protagonismo ao que as jogadoras fizeram dentro do campo, e isso nem sequer é só machismo: é um verdadeiro saque moral”. Na “mouche”!
Rubiales acusou as jogadoras de “falso feminismo”, no que foi aplaudido pelos membros da RFEF, incluindo Vilda, que, mais tarde, lamentou o comportamento impróprio do presidente. O que não impediu que o treinador acabasse demitido, no passado dia 5, por diversas acusações de abusos de algumas jogadoras que já se tinham recusado a jogar no mundial da Austrália/ Nova Zelândia se Rubiales o mantivesse no cargo. De realçar que a selecção espanhola masculina de futebol, solidária com a equipa feminina, repudiou o comportamento inaceitável de Rubiales. As equipas masculinas do Sevilha e do Cádiz entraram em campo, respectivamente, com camisolas com o lema “#SeAcabó” e “Todos somos Jenni”.
No Reino Unido, também foram condenados treinadores de várias modalidades, por abusos sexuais.
Em Portugal, há poucos dados, mas futebolistas do Rio Ave denunciaram, em 2020/21, o assédio sexual do então técnico do clube que também treinou o Famalicão. Em 2022, o Observatório Nacional de Violência Contra Atletas revelou ter recebido 20 denúncias desde Setembro de 2020, com uma média de idades das vítimas, a maioria femininas, abaixo de 18 anos, em várias modalidades, incluindo o futebol. Alexandre Mestre, no Expresso, lembra o caso de uma ex-jogadora e árbitra de basquetebol que em 2021 denunciou o assédio/abuso sexual por parte de um árbitro. Mas no regulamento disciplinar da Federação de Basquetebol, como nas outras, não existe norma específica sobre assédio/ abuso sexual com correspondentes sanções disciplinares, como já está previsto no Regime Jurídico das Federações Desportivas para a violência, a corrupção, a dopagem, o racismo e a xenofobia.
John Macinees, sociólogo, na sua obra, “O Fim da Masculinidade”, defende a tese de que “a masculinidade não existe enquanto propriedade, traço de carácter ou aspeto da identidade dos indivíduos. (…) existe apenas sob a forma de ideologias ou fantasias diversas, sobre o modo como «deveriam» ser os homens, que os homens e as mulheres desenvolvem para melhor conseguirem compreender as suas próprias vidas”.
Em conclusão: “as diferenças sociais entre homens e mulheres, incluindo o seu poder relativo, estatuto e recursos não são a expressão social de uma diferença natural entre ambos, mas o material (fraccionado) e a herança ideológica de uma ordem patriarcal incompatível com a modernidade e com o universalismo”.
A masculinidade é tóxica por natureza!