No meu último artigo abordei o problema das alterações climáticas e das suas trágicas consequências. Uma destas consequências é precisamente o problema energético que o processo de descarbonização a contra-relógio levanta. A esse propósito, cito o presidente do Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável, Filipe Duarte Santos, astrofísico e investigador em Física Nuclear Teórica: “Há um consenso crescente de que as alterações climáticas constituem um dos maiores riscos para os direitos humanos no século XXI, dado que afetam o direito à vida e o «direito a um padrão de vida capaz de assegurar a saúde e o bem-estar de si mesmo e da sua família, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis», conforme consta no artº 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos.(…) O processo de descarbonização deve ser justo do ponto de vista social e económico, a nível nacional, regional e global (…)”(in “Alterações Climáticas”, FFMS, 2021).
Ora, a referida justiça social e económica está a ser posta em causa pelo corte no fornecimento do gás russo que Putin ameaçou ser total, em retaliação pelas sanções impostas pela União Europeia (UE) à Rússia, na sequência da invasão da Ucrânia. Independentemente da necessidade de pressionar a Rússia a negociar a paz (Zelensky deixou de falar em negociações, talvez entusiasmado com os 74 biliões de dólares de ajuda militar e financeira à Ucrânia aprovada até Agosto pelo congresso dos EUA), até agora mais parece que estas sanções estão a funcionar como um boomerang que é lançado na direcção do Kremlin, mas que dá meia volta e acerta em cheio na cabeça da UE.
Os analistas deste banco prevêem”impactos ainda mais profundos desta crise energética do que os da crise petrolífera dos anos 1970” (Expresso, 5/9). E há economistas que comparam esta crise anunciada à dos anos 1930 que abriu caminho para o ascenso do nazi-fascismo. Já se verificam manifestações de protesto contra o aumento do custo de vida,em particular da energia e dos combustíveis, em França, Reino Unido, Alemanha e Chéquia (em Praga 70.000 pessoas na rua a exigir a demissão do governo checo) e na sua mobilização encontram-se partidos e movimentos de esquerda, mas também de direita e da extrema-direita.
A EDP já anunciou que irá aumentar a tarifa de energia do 1º escalão de consumo de gás em 233%; a factura do gás natural irá encarecer,em média, 30 euros. A Galp também já decidiu aumentar, a partir de 1 de Outubro, em 8 euros, em média, o preço do gás natural. O governo legislou para permitir o regresso dos clientes domésticos e pequenos negócios às tarifas reguladas que terão em Outubro um aumento médio de 3,9% . Em primeiro lugar fica demonstrado a falácia de que a liberalização do mercado da energia iria baixar os custos. Estes já estavam a subir muito antes da invasão da Ucrânia e hoje estão precisamente a esse nível. Daí a necessidade de recuperar o controlo público da energia (REN e EDP são controladas pela China). O governo devia seguir a recomendação de Guterres, secretário-geral da ONU, e “tributar os lucros excessivos para financiar um programa público que possa apoiar quem está a perder mais com a inflação”, conforme defendeu o BE.
O primeiro ministro anunciou, com pompa e circunstância, um punhado de medidas que supostamente iriam beneficiar os aposentados e os trabalhadores mais prejudicados com a inflação. No entanto, vários economistas confirmam o que foi de imediato denunciado pela APRE! – Associação de Aposentados Pensionistas e Reformados, que em comunicado assinado pela presidente da Direcção, Maria do Rosário Gama afirma: “(…) a APRe! ficou perplexa com o “corte” no valor das pensões mascarado de antecipação de um pagamento de meia pensão, em outubro, mantendo o valor básico das pensões, o que não corresponde a um aumento real das mesmas. A actualização extraordinária em Outubro impunha-se dado o elevado valor da inflação, devendo este valor servir de base para a aplicação da Lei 53-B/2006, em 2023. O não cumprimento da lei copia o procedimento dos anos da “troika” embora com diferente metodologia. Haverá uma forte redução na percentagem de aumento em 2023, ficando profundamente prejudicada a actualização para 2024 e anos seguintes.”
Quanto à baixa do IVA da electricidade de 13% para 6%, ela só se aplica numa ínfima parte da factura, continuando a maior parte com o IVA de 23%, o que equivale , numa factura de cerca de 100 euros a uma poupança de 1 €, segundo as contas do Jornal de Negócios. A DECO e o Dinheiro Vivo calcularam uma poupança de 1,60 € no consumo mensal de um casal com 2 filhos, com uma potência contratada até 6,9 Kva.
Os 125 euros de apoio único a quem aufere até 2.700 € estão muito longe de compensar a perda de rendimentos de quem trabalha e vive com dificuldades económicas, além de não ter em conta as gritantes desigualdades sociais (note-se que dos 2,3 milhões de portugueses em situação de pobreza ou exclusão social, quase 540 mil são trabalhadores na pobreza apesar de empregados). Para quem ganha 1.200 €, a esmola de 125€ equivale a um aumento de 0,7%, quando a inflação já ultrapassou os 9%.
Muitos outros países europeus tomaram medidas bem mais benéficas para os cidadãos, como a redução do preço dos transportes públicos ou mesmo a sua gratuitidade, como em Espanha (o governo de Costa limitou-se a congelar o preço dos passes). Não se trata aqui de uma “reposição de rendimentos”, mas, pelo contrário, de uma efectiva perda de rendimentos e de um truque manhoso do governo ao antecipar pensões a que já se tinha direito em 2023, muito longe sequer de mitigar o aumento do custo de vida para trabalhadores e pensionistas.