Habituei-me a ler os artigos, na coluna “PAI AOS 50”, do romancista e colunista Joel Neto, na Notícias Magazine, aos domingos. Contudo, o trabalho que mais me chamou a atenção foi publicado na Revista E (Expresso, outubro de 2022): Os pobres mais pobres estão nos Açores. Ninguém fica indiferente ao parágrafo introdutório: “Portugal torna a despertar para a pobreza. E se uma região liderasse todos os rankings de subdesenvolvimento do país ou de toda a UE? Essa região existe e são os Açores. Quase não há um indicador em que o arquipélago não se distinga pela negativa. Lisboa assobia para cima, os políticos, intelectuais e corporações locais assobiam para o lado. Nem os pobres se indignam: não chegam a saber que são pobres.”
Esta grande reportagem coincidiu com a minha ida aos Açores, numa ação de combate ao idadismo que realizámos, em parceria com a Casa do Povo de Santa Bárbara (Ilha Terceira). Passei a estar mais atento à realidade da região, pelos contactos com os nossos parceiros e amigos. Entretanto, a Netflix estreou, com grande sucesso, a serie Rabo de Peixe. Uma reflexão sobre a fortuna e a fatalidade da condição humana. A história ficcional, de quatro amigos, que veem a sua vida mudar com a chegada de uma tonelada de cocaína à costa da pequena vila açoriana Rabo de Peixe. Fica, ao longo dos sete episódios, escancarada uma realidade pouco conhecida dos não ilhéus: o peso e preço da insularidade, a pobreza geracional, a fatalidade de crescer e viver numa comunidade piscatória, num bairro social, a criminalidade, o tráfico de droga, a violência, as adições de álcool e outras drogas ilícitas…
Joel descreve uma “paisagem” social que não faz parte do cartão de visitas do arquipélago. Descreve, com clareza, sensibilidade e responsabilidade social, as duras condições de vida nos bairros sociais e as suas dinâmicas. A chegada da carrinha da metadona que reúne à sua volta “homens e mulheres, novos e velhos – até quase idosos.” A atribuição de mais ou menos apoios, dependendo da existência ou não de atos eleitorais: “Isto agora quando é que há eleições?”. A resignação dos pobres que “não chegam a saber que são pobres”. O horror da vida no bairro, uma quase sentença de morte: “É um bairro terrível. E quem nos dera que fosse o único. (…) Imagine que nascia num lugar assim. Ia sair dali para onde?”. A normalidade e dependência do recurso (quase) único do “dinheiro de graça”, os famigerados duzentos euros, o “Rendimento Social de Inserção é o que lhe chamam.” O drama do círculo vicioso, “E, então, uma criança como esta faz o quê? Olha à volta e não conhece ninguém que trabalhe.” A obesidade infantil, o insucesso e o abandono escolar: “crianças muito gordas arrastavam-se pelas ruas, faltando à escola”, sem que lhes sejam marcadas faltas com uma justificação: “Mas inteligente é. Eu não a reprovo. E, se lhe marco as faltas todas, perdem o subsídio.” Abuso sexual e gravidez na adolescência: “falavam de uma garota que engravidara de um homem casado”.
Poderá haver uma princesa a viver num bairro social? O ensaio da FFMS dá-lhe a resposta. Um bom motivo para ler e dar força ao esforço do homem, Joel Neto, que procura dar alguma luz à intensa escuridão de uma multidão que poderá ter salvação. O autor procura visibilizar a “pobreza, tragédia silenciosa nos Açores” (Açoriano Oriental, 13/03/2023), uma ousadia que lhe terá custado vários ataques e ameaças que subiram de tom depois da reportagem exibida no programa Linha da Frente da RTP (29/06/2023).
Entretanto, o Conselho de Ministros (12/10/2023), aprovou o plano de ação para o período 2022-2025 no âmbito da Estratégia Nacional de Combate à Pobreza.
A pobreza em Portugal é estrutural, perpetua-se por gerações. São 1.700.000 as pessoas em situação de pobreza, vivem com um rendimento mensal inferior a 551,00€, dificultando-lhes, ou mesmo impossibilitando-lhes, o acesso a bens essenciais como alimentação, educação, saúde, habitação ou energia.
(Fotos DR)