Isto não é o da Joana!

É factual que os limites do bom senso e da urbanidade começaram a ser ultrapassados pelas vozes dos deputados do "Chega", às ordens do vezeireiro André, instigador profissional de levantes, que num rápido perceberam que o povo saudosista e invejoso gosta tanto de sangue no alguidar como de canga nas costas.

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  • 12:02 | Segunda-feira, 27 de Maio de 2024
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Em 1958, preparando-se para defrontar Américo Tomás, um apagado ex-ministro da Marinha, que servia o regime com uma subserviência quase acéfala, o general Humberto Delgado, participante do movimento militar de 28 de Maio de 1926, entusiasta do Estado Novo, simpatizante de Hitler, ex-Procurador à Câmara Corporativa, ex-Director-Geral da Aeronáutica Civil, e sobre quem Salazar terá comentado que “voltou estragado dos EUA”, onde havia estado como adido militar na embaixada portuguesa em Washington e chefe da Missão Militar junto da NATO, terá dito, após uma deslocação à Assembleia Nacional, já convertido às virtudes democráticas:

“Que tristeza! Eu julgava o Parlamento uma  Assembleia de homens e fui deparar com uma súcia de garotos dizendo piadas de sol uns aos outros, num barulho indecente próprio de praça de touros ou de taberna.”

O desabafo casa bem com o perfil do general sem medo, um homem de temperamento sanguíneo, com o coração ao pé da boca, de verbo desabrido e impetuoso que, em pré-campanha, e querendo emancipar-se do seu passado salazarista, carregou nas tintas do retrato feito da Assembleia.


Quase sete décadas depois, 50 anos decorridos sobre o dia libertador, as polémicas à volta das intervenções dos deputados e dos seus limites, dão infeliz actualidade e relevo ao citado comentário.

É factual que os limites do bom senso e da urbanidade começaram a ser ultrapassados pelas vozes dos deputados do “Chega”, às ordens do vezeireiro André, instigador profissional de levantes, que num rápido perceberam que o povo saudosista e invejoso gosta tanto de sangue no alguidar como de canga nas costas.

Recuando no tempo, nem em Américo Duarte, de alcunha o boxe, operário da Lisnave e deputado da UDP à Constituinte, um ferrabrás de dente afiado ao capital, a brutalidade do discurso cabotino e parlapatão de Ventura e dos seus sequazes encontra paralelo.

Santos Silva, com o seu jeito truculento e autoritário, ao estilo feudal do posso, quero e mando, mas muito falho de prudente pedagogia, intentou proibir os excessos, almejando, porém, o efeito contrário ao pretendido.

Sucedeu-lhe Aguiar-Branco, nos antípodas daquele magistrado da Nação, tudo permitindo, o funil largo por onde tudo passa e nada se filtra, do verbo virtuoso às borras pastosas. Rejeitando, com uma ingenuidade improdutiva, ser censor dos seus colegas eleitos, refugia-se para tanta abertura na pureza da democracia, esquecendo que também para nela se aplica o velho ditado, quem os seus inimigos poupa, às mãos lhe morre.

Segundo relatos recentes, parece que já não é só sentada nas bancadas em madeira de carvalho, trabalhada em estilo inglês, da Sala das Sessões que a má educação e a maldade campeiam, também na vetusta Sala do Senado, que acolheu Pares e Deputados, e nos austeros corredores ela medra como erva daninha, para vergonha aflitiva da bela estátua da velha República, para embaraço atribulado dos sorumbáticos monges negros beneditinos, cujas almas ainda por ali se sentam, testemunhando horrorizadas o avilte à sua secular divisa, Ora et Labora, e para nojo dos maiores tribunos, de verve erudita e rebuscada, de Passos Manuel e Almeida Garrett, de Amaro da Costa e Vital Moreira, de Fernando Amaral e Almeida Santos. E no bar, na biblioteca, na livraria, nos corredores, incendiando pudores e honras, sob testemunhos variados, atacam no género e na cor, grunhindo na cara de deputadas mais cheiinhas de carnes, dando as boas noites a eleitas negras, ridicularizando opções lésbicas.

Ao que parece, com a sanha da Inquisição, vergastam com duro chicote, em sucessivas algaradas, as opções sexuais de cada qual, e diminuem a cor da pele dos seus iguais. Mas melhor não vão as senhoras de boas maneiras e fina educação que respondem à letra aos viris machos lusitanos, denunciando que a têm curta e mole, tirando medidas e calculando pesos.

Ao pé de gente de uma e de outra banda, que se porta assim, brandas são as vendedeiras do Bolhão e da Ribeira,  bondosas são as mulheres irregulares, assisados são os alugadores de moçoilas viçosas e toleradas.

Com este execrável e torpe cenário, que venha então a censura à linguagem desbragada, imprópria de ser usada em locais tidos como sérios, que venha então a polícia castradora dos dizeres boçais, que venham então as regras que a mediana educação impõe e recomenda.

Em democracia não pode valer tudo, a liberdade de expressão não é um valor absoluto, que cada um usa a seu bel-prazer, segundo o seu livre arbítrio, não cuidando dos danos que ela provoca e dos prejuízos que arrasta.

A boçalidade, de tão pútrida, deve ser esconjurada e remetida para a gamela, o seu lugar preferencial. No mais, exige-se que o hemiciclo não se transforme num vão de escada onde campeie a linguagem de caserna e de bar de alterne, não vire uma alcateia fuzilante e desmandada, que entre os inquilinos da casa da democracia impere o respeito e o bom trato, que haja revolucionários, reformistas e conservadores, de direita, de esquerda e do centro, betinhos, novos-ricos e de mãos calejadas, mas que nenhum venha a desmerecer, pelo desvio do porte e pela incontinência do verbo, do mandato que lhe foi confiado.

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Publicado em Opinião