Há uma década atrás, num texto muito interessante publicado pela revista do Observador, António Barreto escrevia a seguinte frase: “Só a cidade liberta.”.
O conceito de cidade, para Barreto, não era o definido pela geografia ou pelo urbanismo, era um juízo do crescimento pessoal num sítio onde as amarras não existissem, onde cada criatura fosse mais ela.
Um dos problemas do país é a pequenez. E esse é também o problema que quem fala sobre emigração deveria eleger como primordial para a entender.
Quando eu era adolescente, em finais da década de 1970, a grande ambição dos meus amigos era ir estudar para o Porto. O Marão era uma serra imensa, a viagem de quatro horas de autocarro era um martírio.
Para mim, para nós, a libertação estava a menos de uma centena de quilómetros, era a nossa emancipação.
É partir daqui que importa ver a emigração e não apenas com os olhos das oportunidades que faltam em Portugal. A maior parte dos jovens de hoje já não quer sair de casa a ter de justificar por que usa tatuagens, por que veste calças vermelhas, por que usa cabelos de todas as cores. E também não quer viver o mundo que está na cabeça dos seus pais e avós.
É, nesta circunstância de vida que se encaixa a primeira e a grande razão para a emigração – a grande maioria dos jovens não quer a pequenez, abomina a linguagem insuficiente, rejeita a existência em que a ruralidade salazarista os quer fazer pouca gente e cheia de medos e penas.
Muitas famílias têm a visão proprietária dos seus filhos. Ora, os filhos não são dos pais e os pais não devem travar o futuro dos filhos com medo do seu próprio futuro e da sua velhice. Este é outro dos grandes problemas da nossa juventude – quase não se identifica com a mentalidade, a ausência de ambição e o sentido de propriedade, levando, em muitas situações, a chantagem por parte dos mais próximos.
Os políticos passaram a considerar que temos a geração mais escolarizada de sempre. Ninguém nega. Mas será que, comparativamente com outros países, temos a geração mais preparada de sempre?
No programa Expresso da Meia Noite da passada semana eram convidados o CEO da Siemens, uma fundadora do Coletivo Matéria e o secretário geral da Business Roundtable Portugal.
No debate, os convidados e os jornalistas só falaram de uma parte da emigração que, no século passado se não chamava assim, antes se identificava como o universo dos expatriados. A emigração não era coisa que se falasse nas famílias das elites que se formavam nas escolas inglesas, como a emigração das elites, que que se estava a formar nas universidades francesas ou suíças, era recheada de exilados políticos que também não eram emigrados.
A emigração, agora já assumida como conceito por todos, ricos ou pobres, não se vai eliminar de forma substancial pelas razões que já indiquei, mas também por outras que raras vezes são assinaladas.
Serão reduzidíssimas as famílias, em Portugal, que não tenham parentes em muitos países da Europa, no Brasil, no Canadá ou nos Estados Unidos. E essa base cria condições para uma saída mais fácil. E há, associada a esta circunstância, a perda da vergonha.
Esta é a realidade da emigração que parte de todo o território que muitos consideram interior e este cenário é muito difícil de contrariar. Será mais provável que as aldeias e as vilas venham a ter mais cidadãos vindos do universo dos países de língua oficial portuguesa do que observem o regresso dos que dali partiram.
Talvez esteja Portugal a assumir a verdadeira Europa. Quando nos concederam uma pertença comum, nos abriram fronteiras e nos equipararam certificações académicas, o que fizeram foi implodir a palavra emigração, estando os portugueses a viver, hoje, um novo tempo de liberdade sem estigmas.
Há uma outra emigração que é recente e que também não volta. Essa é a que foi obrigada a sair pela ausência completa de sentido na intervenção feita pela troika no início da década passada.
A economia foi desestruturada, setores inteiros perderam dezenas de milhar de trabalhadores qualificados. O grave problema que hoje vivemos no setor da habitação é disso reflexo. A construção civil não tem trabalhadores categorizados para fazer face às necessidades do país.
Dessa saída não beneficiaram só os países da tradicional emigração portuguesa, mas também países árabes onde se verificam salários e condições de vida que o velho continente já não potencia.
Esta massa de emigrantes não tem qualquer intenção de voltar para Portugal, seja para o interior ou para o litoral, até porque as escolas dos seus filhos nesses países são melhores, os serviços de saúde são muito melhores e as pensões lhes permitirão viver onde quiserem com um padrão de vida relativamente alto.
Por último, a emigração dos cérebros.
No debate público fala-se da fuga de cérebros. Não é de agora essa fuga. A saída pelos mares em Quinhentos foi uma fuga de cérebros, o Brasil português do século XIX foi fuga de cérebros, normalmente filhos segundos implicados pela lei dos morgadios.
Façam uma curta sondagem e perguntem aos alunos com as médias mais altas se querem ficar no país. A maioria dirá que não. Porque não conseguirão ver o mundo, não conseguirão chefiar equipas e porque anseiam ser mais do que um dos da linha de montagem.
Para além disso, os grandes cérebros, com exceção do setor das tecnologias que tem vindo a afirmar-se e que pode ser a nossa salvação, não conseguem olhar para o nosso empresariado e ver nele ambição e visão.
As empresas portuguesas têm como lógica um silogismo patético – baixem os impostos, nós aumentamos os salários e fixamos os melhores. Ora, a maior parte dos jovens cérebros quer bons salários, mas não é aí que está o principal problema. É, sim, na ausência de remuneração intelectual, de capacidade para dar largas à criatividade, para potenciar valor.
Se analisarmos as grandes empresas portuguesas o que vemos, nos cargos de topo, é a tal endogamia que se aplica às universidades – amiguismo sem qualidade, compadrio nascido nas escolas e nas universidades frequentadas.
Se alguém quiser examinar as empresas que integram a Business Roundtable Portugal, vai constatar que os quadros de nível médio e superior se encaixam em dois ou três círculos de formação e de amizades, circunstância que é mais danosa do que a que já vivemos quando um punhado de famílias, durante o Estado Novo, mandava em Portugal.
Quantos Executivos atingem os níveis médios de uma empresa que se tenham formado na Universidade de Évora ou da Beira Interior? Quantos destes, chegados aos grupos empresariais, conseguem uma bolsa para fazerem uma pós-graduação no INSEAD?
O país, fruto das políticas centralistas que tem seguido desde há muito, não dá espaço a nada mais do que a uns soldadinhos de chumbo que aprendem a vestir fato e gravata com sapatos Oxford.
Todos os pontos que referi fazem a realidade da nossa emigração hodierna. Os planos para o regresso são boas intenções que não vão ao fundo dos enquistamentos que identifiquei. Mas também devemos perguntar – a emigração deve ser vista sem se analisar a imigração? Este é o ponto!
Ora, a nossa atual emigração já não é nada disso. Não nascerão novos ranchos folclóricos nem as famílias farão piqueniques aos domingos onde os homens se metem nos copos e as mulheres berram para os filhos. Também não regressarão anualmente, em agosto, às festas da terra. Os portugueses de hoje, que vão pelo mundo fora, alguns até a criarem novos e importantes projetos, têm outra ambição, não encontrando aqui, neste lado mais ocidental da Europa, quem fale a sua linguagem.
A forma anacrónica como continuamos a olhar a nossa emigração, é o facto do atual Secretário de Estado, que acompanha a área, ser o mesmo de há duas décadas. Nesse primeiro tempo das suas deambulações pelo mundo ainda não havia internet, nem viagens low cost, mas até hoje José Cesário resiste como um copo teimoso.
Ascenso Simões