“A minha mulher abandonou-me, já lhe contei, na sequência de umas viagens prolongadas que fiz. Não me deu uma explicação plausível. (…) eu tinha quarenta e oito anos. Foi um choque, depois de outro choque. O meu coração cedeu e o meu cérebro, provavelmente, também. Não o nego. A minha firma faliu, tive de entregar a casa ao banco. E, num repente, estava na rua, sem ter para onde ir. Foi dramático, confesso. Terrível. Vergonhoso. Não pelo facto em si, mas porque não consegui reagir.”
(Fernando Correia, E se eu fosse Deus? Guerra e Paz)
Pode chocar alguns leitores, mas, algo lamentável e inaceitável, há técnicos que desconhecem o conceito de “pessoa em situação de sem-abrigo”, pelo que, pedagogicamente, transcrevo a definição plasmada na Estratégia Nacional para a Integração das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo (ENIPSSA) 2025-2030 (Resolução do Conselho de Ministros n.º 61/2024, de 02 de abril):
“Considera-se pessoa em situação de sem-abrigo aquela que, independentemente da sua nacionalidade, situação documental, origem racial ou étnica, religião, idade, sexo, orientação sexual, identidade e expressão de género e características sexuais, condição socioeconómica, condição de saúde física e mental e situação de deficiência, se encontre:
Sem teto, vivendo no espaço público, alojada em abrigo de emergência ou com paradeiro em local precário ou Sem casa, encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito.”
Não será difícil colocarmo-nos de acordo quanto ao fracasso da anterior estratégia 2017-2023. Houve um forte apelo do Sr. Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, que se comprometeu em “fazer tudo para num prazo razoável erradicar esta ferida social, esta chaga social, este fracasso social, de todos”. Longe de ter sido erradicado, o fenómeno tem aumentado. O Inquérito de Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo em Portugal, promovido pela ENIPSSA, recenseou, a 31 de dezembro de 2022, 10.773 pessoas nesta condição.
A informação recolhida é pobre, permite apenas uma “fotografia” estatística, mas não uma “radiografia” das causas e dos fluxos. Temo que não esteja a ser observado o “elefante” na sala que resulta de duas megatendências. Por um lado, a liberalização da economia e do mercado laboral multiplicam a procura de trabalhadores que, em regra, realizam atividades que os nativos já não querem fazer: prestação de cuidados, serviços de limpeza, construção civil, hotelaria, indústria, trabalhos agrícolas…
Por outro lado, ganha força um discurso anti-imigrantes. O tempo da política não é, muitas vezes, o tempo das pessoas. Neste caso concreto, no nosso país, basta estarmos atento às notícias para que tomemos consciência da realidade vivida por milhares de pessoas que vieram para Portugal com a esperança de uma vida melhor, algo que rapidamente se dissipa e reduz, quando muito, a uma tenda numa das avenidas ou praça da capital.
Sendo necessários à economia, não havendo soluções políticas, depois da espuma dos dias, a vida continua, ignora-se o problema, como se milhares de pessoas não estivessem cá, hoje, ainda que não os queiramos ver. O que mudou em Odemira? Potencia-se, a cada dia, o risco de uma nova classe marginalizada, segregada e desintegrada. Não podemos continuar a usar as mesmas estratégias para um imigrante que chega ao nosso país com a roupa do corpo e sem conhecer a língua de Camões e para o perfil descrito pelo Fernando Correia: “A minha firma faliu, tive de entregar a casa ao banco. E, num repente, estava na rua, sem ter para onde ir.” Na nova estratégia, tal como na que a antecedeu, há um elemento fundamental que está em falta, não estão definidos os recursos financeiros disponíveis para a sua implementação. Não quero ser pessimista, mas, face um desafio desta complexidade, será difícil ter sucesso sem assegurar três aspetos:
1- CAUSAS – é necessário conhecer os itinerários da exclusão social. As pessoas, ao longo do seu percurso de vida, seguem uma série de caminhos que, em alguns casos, as coloca numa situação de exclusão social. Situações em que se acumulam barreiras e riscos em múltiplas dimensões: laboral (ex.º: emprego / desemprego); económica (ex.º: rendimentos / endividamento – ter casa / não ter casa) ; culturais (Ex.º: boa formação e qualificação / fraca formação ou analfabetismo funcional); pessoais (ex.º: motivação / desmotivação – saúde / doença); sociais ou relacionais (ex.º: boas relações familiares e de amizade, sentido de pertença / carência de vínculos familiares fortes, isolamento social)
2- FLUXOS – importa conhecer a origem (nacionais ou estrangeiros) e como se movimentam dentro de país (seguindo a sazonalidade das colheitas?). Há um dado recente, relacionado com o aumento de jovens de origem estrangeira que, além da sua situação jurídica (irregular, pedido de asilo…) como possível causa da sua situação de sem-abrigo, também são mais vulneráveis à crise económica e à falta de emprego, obstaculizando o seu acesso à habitação. Somando-se a ausência ou escassez de laços relacionais informais.
3- RECURSOS – é fundamental conhecer os recursos existentes e a disponibilizar para que possam ser desenhados planos de ação imbuídos de uma perspetiva holística, global e integral que potenciem: a prevenção, sensibilização e produção de conhecimentos; a coordenação e o trabalho em rede; a adequação e dignificação dos processos e acolhimentos numa perspetiva de cuidados; o empoderamento para reconstruir projetos de vida.
Portugal também enfrenta este desafio social que precisa de uma resposta a dois níveis, nacional e local. A estatística indica que é um problema dos grandes centros urbanos, com especial incidência na grande Lisboa e Porto. Mas, dificilmente outros territórios ficarão imunes a estes fluxos e novas problemáticas sociais.
É tempo de interpretar os sinais e preparar respostas locais que terão um papel preponderante na hora de implementar a estratégia. A intervenção de proximidade é muito mais eficaz. Para que tal ocorra, é necessário que o Estado central aloque os recursos necessários. O presidente da república (falando aos jornalistas, em Coimbra, à margem das comemorações do 40.º aniversário da Associação Nacional de Municípios Portugueses, 20 de maio de 2024 ) já indicou a estratégia para que se criem itinerários de inclusão, defendendo que “é urgente definir o papel do Estado e das autarquias nas várias dimensões do problema das pessoas em situação de sem-abrigo.”
“Acabar com a situação sem-abrigo não significa criminalizar as pessoas sem-abrigo, ou julgar a sua situação. Significa sim, investir tempo e recursos em soluções duradouras para a situação de sem-abrigo e fornecer verdadeiras alternativas personalizadas. É tempo de parar de investir em medidas de emergência e temporárias, que após várias décadas, apenas têm gerido o problema da situação sem-abrigo sem o erradicar. Vamos trabalhar por uma Europa disposta a acabar com a situação sem-abrigo. De uma vez por todas!” (FEANTSA)
(Fotos DR)