Cumplicidades

Mas nem tudo era pacato e ameno entre nós, o Amável gostava de livros grandes com muitas páginas e por vezes fixava-se num ou noutro que para mim não tinham qualquer interesse, acabava por ceder e lá concordava um bocado a contragosto com as escolhas do meu companheiro. Foi devido a uma teimosia destas, que eu li pela primeira vez ( digo primeira porque já o voltei a ler) o “Arquipélago Gulag" de Soljenitsin.

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  • 16:36 | Terça-feira, 09 de Julho de 2024
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O Amável era um ser humano muito especial! Foi especial ao nascer de uma mãe paralítica e de um pai com um problema de alcoolismo. Era especial na estatura, muito abaixo do normal para um homem de estatura mediana, mas acima do normal para um anão. Estava ali entre a normalidade e a diferença. Era especial porque não era um doente mental, mas as suas capacidades intelectuais apresentavam muitas limitações. Era especial porque era extremamente educado e cordial. Era especial porque devido à sua doença jamais se acreditou que ele viveria até muito próximo dos setenta anos.

O Amável era diferente e contrariando todas as expectativas aprendeu a ler e a escrever. Era diferente porque gostava de ler, numa altura em que ler era considerado pela maioria da sociedade rural uma perda de tempo e era coisa que era feita por quem não tinha mais nada para fazer. Ler era para os ociosos e malandros. Eu e o Amável não éramos ociosos nem malandros, durante as férias grandes fartava-me de trabalhar, e o Amável, mesmo com as suas capacidades físicas reduzidas sempre ia dando uma mãozinha a quem rogasse os seus serviços. Apenas gostávamos de ler!

E os livros?! Como é que eles nos chegavam às mãos? Infalivelmente de quinze em quinze dias por volta das cinco horas, no largo da Tulha, com a biblioteca itinerante da fundação Calouste Gulbenkian. O primeiro a aperceber-se da chegada avisava o outro com um apenas “já chegou”. E lá íamos os dois, cartão de sócio na mão e os livros para entregar.


Quando chegávamos à Janela do lado do condutor o senhor Zé-Gui, conferia os livros e autorizava a entrada para a parte detrás da carrinha, para podermos escolher os novos livros, para mais uma quinzena de boas leituras. Cada leitor apenas podia requisitar cinco livros, mas eu estava em vantagem porque podia ler os meus e os do Amável. Normalmente, era eu, quem escolhia os livros. Desde Júlio Dinis, Almeida Garrett, Eça de Queirós (nem queiram saber os malabarismos que tive de fazer para não ser descoberta a ler “O Crime do Padre Amaro”), Júlio Verne, Cervantes, Tolstoi, Dostoievesky entre tantos outros, foram partilhados pelos dois cúmplices de leitura.

Mas nem tudo era pacato e ameno entre nós, o Amável gostava de livros grandes com muitas páginas e por vezes fixava-se num ou noutro que para mim não tinham qualquer interesse, acabava por ceder e lá concordava um bocado a contragosto com as escolhas do meu companheiro. Foi devido a uma teimosia destas, que eu li pela primeira vez ( digo primeira porque já o voltei a ler) o “Arquipélago Gulag” de Soljenitsin.

Não tenho a certeza se o Amável lia todos aqueles livros, mas a imagem que atravessa a minha memória é a de um homem pequeno, com um chapéu preto na cabeça, que tirava sempre que alguém passava, em sinal de respeito e como forma de cumprimento, encostado a uma parede de pedra, de uma casa da sua rua, muito direito e hirto, com um livro aberto entre as duas mãos.

Nunca me negou nenhum livro, bastava eu pedi-lo, que ele mesmo que o tivesse nas mãos imediatamente o fechava e mo passava. Hoje, quando recordo esses momento, acredito que o Amável sabia que o livro talvez fosse mais útil para mim do que para ele e que o seu aparente desprendimento mostrava o quanto ele achava a leitura importante.

A última vez que o vi, depois de vários anos sem o visitar (que remorso!), foi no lar de idosos em Alvite, muito limpo e asseado numa cadeira de rodas, com um ar feliz, abeirei-me dele envergonhada, receosa e perguntei-lhe: Sabes quem eu sou? O Amável apenas respondeu: és a Maria Ondina. O meu bem-haja para ele, são estas palavras e esta flor Descansa em paz…

 

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Publicado em Opinião