Se fosse na campanha, a nossa mente tolerava e por achar de mais a fartura, até lhe encontrava graça, perdoando os deméritos aos destravados autores das promessas gulosas.
Porque todos sabemos que a campanha eleitoral é um circo ambulante de terceira categoria, que instala o barraco nas praças municipais, enquanto os obedientes serviçais alinham as cadeiras de plástico onde o povo se assentará para aplaudir o compère e o artista principal, que desfila num brilho e em acenos triunfantes, a mentira aceita-se.
Há muito que incorporámos que aquelas duas fastidiosas semanas são do pior para a sanidade cívica do zeloso contribuinte e que, depois de arreada a tenda de lona e apagadas as luzes da festança, voltamos às coisas sérias, dignas de gente com vergonha e pudor.
Com mais ou menos conivência e resistência, acabamos por ser engolidos por essas marés de mau paladar, que arrastam, sem retorno, a credibilidade dos políticos para territórios negativos e de sobeja inconveniência.
Os protagonistas desta história ensombrada são Montenegro e Ventura, e o que os chama ao palco é o Orçamento para 2025.
Desavindos há muito, disputando um eleitorado flutuante e que lhes é comum, travam-se de razões por tudo e por nada, por uma linha e por uma agulha, dando-se a espectáculos tristes, a destratos evitáveis, se os consultores de imagem fossem ouvidos e as boas maneiras imperassem.
Desta feita, o que os traz à bulha são as reuniões entre ambos e as propostas tentadoras que, supostamente, terão existido por parte de Montenegro ao seu adversário.
Depois de o líder do PSD ter vituperado Ventura, acusando-o de ser um catavento, que tem dez posições diferentes sobre o mesmo assunto, o líder do Chega deu fogo à peça, desfiando um rosário de acusações, umas mais graves do que outras.
Que, sobre este Orçamento, já tinha havido 5 reuniões com Montenegro, que este lhe propôs um lugar no governo, no próximo ano, em troca do apoio ao documento em negociação, que o PM lhe tinha sugerido uma saída do palácio de Belém, pela porta das traseiras, reduzido à condição de estafeta de pizzas e hamburgers, que considerava o PS infantil, que as reuniões com a Iniciativa Liberal tinham sido uma encenação improdutiva, servindo para capear as que houvera com o Chega, essas sim interessantes. E mais, que tinha provas da duração e do conteúdo das reuniões citadas, esperando não ter de as mostrar em público. Esticando a corda, mas num recuo atrapalhado, convidou depois o PM a processá-lo para, em sede própria, os tribunais, apresentar as provas do que afirmava.
Convenhamos que este é um expediente miudinho, pífio. A sede própria para mostrar as provas é a mesma que lhe serviu para fazer a denúncia. O resto é conversa da treta. E, desembestado, terminou, sem poupar nas palavras, acusando Montenegro de estar a mentir.
Sendo Montenegro, primeiro-ministro de Portugal, uma nação com quase nove séculos de história e fronteiras definidas, que já no exercício dessas funções tem repetido à exaustão, referindo-se ao Chega, que “não é não”, e que não havia negociações com este partido, este desencontro de versões é grave.
Não sei quem falará verdade, mas tenho como seguro que, sendo tão antagónicas as versões que cada qual apresenta, um deles, neste processo, está a mentir. E quem mente, é mentiroso. E um político claramente mentiroso arrasta para a imundície e para a sarjeta as maçãs sãs, que se salvam de entre a fruta podre.
Esquecendo ambos, infantilmente, que no campo institucional pode haver contraditório, disputa, despique, denúncia, confronto, censura, até dureza verbal, mas sempre acompanhados de elevação, um dos dois fica mal na foto de família e um deles não sai decente deste imbróglio escusado.
Um raciocínio prudente diz-me que Ventura não pode acusar impunemente Montenegro e alcunhá-lo de mentiroso, sem estar respaldado em provas irrefutáveis da gravidade enorme das suas acusações.
Ainda acreditando na democracia, e seguindo um juízo sensato, custa-me a crer, que, na qualidade de primeiro-ministro, Montenegro, com a chancela oficial do executivo, faça nos bastidores o contrário do que arenga na praça pública, que confunda os papéis de líder partidário e de governante eleito.
Certo, é que Montenegro, quando questionado pelos jornalistas, não pode refugiar-se nas evasivas, desvalorizando a questão, que tem toda a pertinência, insistindo em afirmar que está tudo dito. O problema é que não está, enquanto não houver um esclarecimento que ilumine este ambiente baço e deslavado. Porque está posta em causa a honorabilidade de quem devia ser um exemplo, o assunto é sério e não deve ser esquecido, até ao apuramento da verdade.
Se Ventura, o arauto da mudança, o paladino da seriedade, o homem da esfregona, estiver a mentir nas denúncias que expõe, cai no descrédito, faz a figura ridícula do estouvado e merece sair pela porta de serviço, empurrado, sem piedade, pelos músicos da sua orquestra, certamente incomodados e desiludidos com a desafinação, escorraçado pelos votantes em geral.
Se for o PM a mentir, nesta matéria, e no contexto sócio-político de todos conhecido, não façamos de conta que nada se passa, porque é demasiado grave para que tudo fique na mesma. A ser verdade, esta pirueta, no poço da morte, põe em causa a seriedade que é expectável existir no funcionamento das instituições democráticas, e, por extensão, na sua normalidade. E dinamita a confiança que deve acompanhar o titular de um alto cargo da Nação.
Se se confirmar a versão de Ventura, seria bom que Montenegro, ferido de morte na sua credibilidade, mudasse de vida: ficando-se pela advocacia, profissão quiçá mais consentânea com trocas e baldrocas ou emigrando para um qualquer paraíso fiscal onde tudo vale e nada se paga.
O que está em cima da mesa não é um simples “faits divers”, não é zanga de comadres, não é assunto de alcoviteiras, não é arrufo de namorados. É assunto sério.
Se nada se esclarecer, se nada se apurar – e há tantas comissões parlamentares de inquérito sobre assuntos de chacha, que uma a sério só tornava mais higiénica a instituição parlamentar – é porque o povo português, tão acusado de ser manso e frouxo, tem o que merece: políticos impunes, que se pavoneiam alarvemente na mansidão irritante dos lusitanos adormecidos.
Se nada for feito, os que detêm o poder soberano, o mais nobre, que o povo, confiando, e por delegação, lhes transmite, acreditando que fica em boas mãos, continuarão uns pavões empertigados, distantes, passeando-se bem perfumados, acenando as mãos espalmadas com displicência, em jeito escarninho, imaginando-se superiores e intocáveis, sem paciência nem tempo para coisas que os incomodem, minudências abusadas, convencidos de uma importância que não têm e em que só eles acreditam.
Entretanto, que os santos e os arcanjos não se esqueçam de nós.