A lesma arrasta-se… não assobia para o lado

Haverá alguém mais importante do que quem cuida (rá) de nós ou dos nossos entes queridos? Se a resposta é óbvia, vamos continuar, cegamente, a desvalorizar quem cuida? Se nada for feito, não tardará muito tempo, até que o desajustado sistema profissional de cuidados colapse. Não nos fiemos nos robôs, nada substitui o contacto humano.  

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  • 14:49 | Domingo, 03 de Março de 2024
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Por estes dias, desloquei-me ao Porto com o objetivo de dar formação, no âmbito das demências, a cuidadoras formais / profissionais, uma profissão socialmente desvalorizada, muito feminizada, cada vez mais realizada por imigrantes de diversas geografias, maioritariamente brasileiras.

A socióloga espanhola María Ángeles Durán, pioneira na pesquisa sobre o trabalho não remunerado e a situação social das mulheres, designa este grupo, responsável pela prestação de cuidados, de “cuidatoriado”.  Estas mulheres, tal como as que prestam serviços de limpeza, “As Invisíveis” (Rita Pereira de Carvalho, Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022), entram cedo e saem tarde, são mal remuneradas, discriminadas porque são, muitas delas, imigrantes e obrigam-se a ter dois ou três empregos para garantirem a sua sobrevivência e a das famílias. A sua ação é imprescindível num dos países, Portugal, mais envelhecidos do mundo. É mais do que tempo de pararmos, refletirmos e criarmos, enquanto comunidade, as condições necessárias para que sejam reconhecidas socialmente, profissionalmente e humanamente. Haverá alguém mais importante do que quem cuida (rá) de nós ou dos nossos entes queridos? Se a resposta é óbvia, vamos continuar, cegamente, a desvalorizar quem cuida? Se nada for feito, não tardará muito tempo, até que o desajustado sistema profissional de cuidados colapse. Não nos fiemos nos robôs, nada substitui o contacto humano.

Renovamos a esperança quando nos dão estas oportunidades, é um sinal de que as entidades começam a dar valor ao trabalho do cuidado, um primeiro passo para que as cuidadoras saiam da imerecida invisibilidade. É um privilégio poder partilhar momentos com estas mulheres, trocar conhecimentos, experiências e levar um banho de realidade que me ativa e transporta para fora da bolha, da minha zona de conforto. Percecionamos o Portugal real que não é captado pelos media tradicionais e não atrai os ativistas de sofá e das redes sociais. Sentimos que a vida das pessoas não corresponde ao discurso político vigente. Há algo de errado. Se temos uma economia a crescer e os números do desemprego historicamente baixos, como é possível assistirmos ao regresso das barracas e ao crescimento dos acampamentos? Em dezembro estive em Lisboa e senti vergonha do que vi na capital do meu país, a proliferação de pessoas a lutar por um espaço para colocar o seu cartão na Estação do Oriente, o regresso do “Casal Ventoso” na Avenida de Ceuta, enfim, uma degradação, sem fim, da condição humana. Estamos na presença de uma realidade que nos afasta da convergência e nos aproxima da emergência.


Ao chegar à entidade onde fui dar formação, deparei-me com uma fila de homens, cerca de três dezenas, à espera da sua vez para receberem uma refeição, provavelmente a única do dia. São distribuídas, diariamente, pela entidade de cariz religioso, entre 550 e 600 refeições por dia, um número que só foi ultrapassado durante a pandemia, segundo a responsável. “Estes muçulmanos de merda deviam ir para a mesquita e não estarem aqui, na igreja, a usufruir da comida.” Cerca de 90% das pessoas apoiadas são estrangeiras, muitos não falam português. A conflitualidade é latente. As dificuldades de integração são colossais. Como se pode integrar alguém que chega até nós, não sabe falar a língua portuguesa e se vê obrigado a viver na rua? A propósito da extinção do Serviço de Estrangeiros e Fonteiras (SEF), sugiro a leitura do trabalho do jornalista Celso Paiva Sol com sonoplastia de André Peralta “Foi uma vez o SEF” (site da Rádio Renascença). O extinto SEF deu lugar à Agência para a Integração, Migrações e Asilo (AIMA) que parece mergulhada num caos: “Imigrantes protestam contra AIMA por atrasos nos cartões de residência” (SIC); “Dezenas (des)esperam nas filas de atendimento da AIMA” (CNN); “Advogado tem 200 processos contra a AIMA, sucessora do SEF. As pessoas estão desesperadas” (Público)”; “Cerca de 20 requerentes de asilo estão desde domingo a dormir na rua em Lisboa. Agência de migrações diz estar a tentar “encontrar solução” (Observador); “Há pouco que a AIMA possa fazer” pelas condições em que migrantes dormem no aeroporto.” (Público).

Na campanha para as eleições legislativas, temas como o envelhecimento, os cuidados, a imigração e a pobreza não são prioritários num país com de 25% de pessoas com 65 ou mais anos, 800.000 cuidadores informais, 4,4 milhões de pessoas pobres se não houvesse transferências sociais (INE), mais de 500.000 vivem em privação material e social severa. Este último dado foi divulgado pela Cáritas que apresentou esta semana um estudo que ajuda a explicar a contradição entre a agenda mediática e a vida real das pessoas. A Cáritas revela que os dados oficiais estão subestimados e dá um grito de alerta para a gravidade da situação: “A dimensão da pobreza em Portugal é mais grave do que é revelado pelos números oficiais”.

Não sendo um leitor de poesia, senti-me tocado pelo livro “A Lesma Arrasta-se” do poeta Eduardo Arimateia. Ao som da música “Assobia para o lado”, interpretada pelo Carlão, leio os primeiros versos: “Primeiro, respira fundo. Torna a respirar. Lê o texto como se estivesses a ler a lista de compras do supermercado. Respira fundo. Olha-te ao espelho. Olha para mim. Respira fundo. Dá um passo atrás. Lê, as primeiras vinte palavras, lentamente. Respira fundo. Lê as palavras sem absorveres o significado. Fecha os olhos. Repete as cinco primeiras palavras e encontra-lhes o sentido. Respira. Olha em frente. Longe de mim.”

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Publicado em Opinião