Não compete emitir juízos de valor sobre o acontecido sem ter a perícia técnica e o conhecimento de todos os detalhes, porém, salta à vista de um leigo o seguinte conjunto de factos concretos:
1ª A carrinha Mercedes-Benz Sprinter de 6/lugares é um furgão misto, de passageiros e de carga;
2ª Tem a capacidade para 3 lugares à frente, condutor incluído, e 3 lugares na 2ª fila de bancos; esta terá sido “artesanalmente” alterada no espaço destinado à carga, para transportar mais passageiros;
3ª Neste espaço global seguiriam 13 pessoas com idades compreendidas entre os 7 e os 63 anos;
4ª A seguir à 2ª fila de bancos, a “sprinter” em causa tem um espaço de carga fechado por uma antepara contra os objectos deslizantes, inacessível por dentro. Aqui, por efeito da referida alteração feita, seguiriam também passageiros; a bagagem maior iria num atrelado cuja tracção altera a segurança e exige condução diferenciada;
5ª A capacidade de carga para um veículo idêntico de 3 lugares é da ordem dos 1.000 quilos. Com 13 passageiros e bagagens, num veículo de 6 lugares, a capacidade de carga reduz-se mas, o peso transportado, em concreto, excederia provavelmente esse valor;
6ª A distância entre Fribourg, na Suíça e Sernancelhe é de 1.728,4 kms pela auto-estrada A89, percorrida num presumível tempo de 16 horas e 12 minutos; bastante mais pelo trajecto em estradas nacionais, em quilómetros e em tempo;
7ª Seguia apenas um motorista para uma tão grande distância, na qual as paragens costumam ser somente para abastecer, comer uma “bucha” e ir ao wc;
8ª O motorista sobrevivente do acidente tem 19 anos; ou seja, tem carta há mais ou menos um ano, o que não significa que não possa ser um excelente condutor, mas, forçosamente, com pouca “estrada” e eventualmente sem a habilitação legal para aquele tipo de transporte, que só pode ser requerida com mais de 21 anos de idade;
9ª O trajecto, para evitar portagens e sair mais barato foi efectuado, prioritariamente e em território francês, pela R79, uma nacional de duas faixas de rodagem com um forte afluxo de trânsito e considerada pela imprensa francesa como “La route maudite de la mort”, tal o número de acidentes aí registados;
10ª Uma estrada deste tipo e com este perfil de tráfego é considerada de alta perigosidade, exigindo cuidados e atenções redobradas na condução;
11ª Estes transportes têm preços oscilantes à volta de 100€ passageiro com bagagem. Em combustível, um trajecto destes, gasta à volta de 170 litros de gasóleo. Não é onerado por portagens;
12ª Nas alturas de Natal, Páscoa, início e fim de férias, estes transportadores fazem um vai-e-vem contínuo de viagens Portugal/França; Portugal/Alemanha; Portugal/Suíça e retorno.
13ª A irregularidade mais flagrante prende-se com a sobrecarga transportada;
14ª Nada se sabe sobre a velocidade a que seguia o veículo. Só a peritagem dos destroços a poderá determinar aquando do embate;
15ª O condutor saiu da sua faixa de rodagem e foi colidir, à esquerda, com um pesado de mercadorias italiano que seguia em sentido contrário;
16ª Ignora-se se foi numa tentativa de ultrapassagem, numa distracção, num breve momento de cansaço/sono, ou numa imperícia do condutor que terá deixado o veículo ir à berma, não o segurando quando a força centrífuga o “disparou” para a faixa contrária;
17ª O resultado à vista é aquele que todos nós conhecemos. 12 vidas foram ali ceifadas. E porém, é natural que quase todos, em função de uma tarifa eventualmente mais baixa a pagar, tivessem uma certa noção e consciência de que aquela sobrecarga de “desenrasca” comportava alguns riscos.
(…)
Em meados da década de 80 fiz mais 8 colegas e um motorista a viagem Poitiers – Viseu, num análogo transporte. À saída de Poitiers já o motorista se ia despistando com o cansaço; por mais três vezes tal ia sucedendo em menos de 100 quilómetros percorridos.
Perante o risco iminente, mandámo-lo parar e eu assumi a condução da “gasta” Ford Transit. O motorista adormeceu de imediato. Acordou apenas em Portugal. (Lembras-te, Isabel Brito Moura?).
Não excedemos os 90 kms/h pois o veículo, com os passageiros e o peso de bagagem atrás, oscilava perigosamente a mais do que essa velocidade. Parámos de 3 em 3 horas. Perdemo-nos em Bordéus. Desentorpecemos as pernas, tomámos café sempre que houve oportunidade. Os meus colegas, à vez, mantinham conversa comigo.
Saímos de Poitiers às 16 horas. Fizemos os mais de 1500 quilómetros, sem autoestrada, em mais de 20 horas. Chegámos a Viseu à hora de almoço. Eu estava exausto e era um homem com menos de 30 anos, na pujança da vida.
Moral da história? O leitor que a tire, se a isso se der ao trabalho.
Nota final: O conteúdo deste artigo é meramente profiláctico e pedagógico. Uma mera reflexão para obviar a situações semelhantes.