SER IGUAL E SER DIFERENTE
Chama-se João e vive numa casa bonita, no Bairro da Sobreira, na vizinha Freguesia de Póvoa de Sobrinhos. Que é lugar tranquilo, assim me pareceu na tarde em que por ali me demorei, imaginando como deve ser belo ver dali o sol ao romper e ao subir a linha do horizonte. O João que é […]
Chama-se João e vive numa casa bonita, no Bairro da Sobreira, na vizinha Freguesia de Póvoa de Sobrinhos. Que é lugar tranquilo, assim me pareceu na tarde em que por ali me demorei, imaginando como deve ser belo ver dali o sol ao romper e ao subir a linha do horizonte.
O João que é assunto da minha história tem a idade já de homem feito, vinte e três anos contados, e vive ali com seus pais. O João, que é igual a nós e, todavia, tão diferente. O João é “autista”, portador desses “Transtornos do Espectro Autista – TEA”, dessa desordem complexa do desenvolvimento do cérebro que o faz diferente, por mais que filho de Deus, por mais que cidadão entre os homens com os quais não pode ter comunicação fácil ao jeito do que entendemos por nossa habitual conduta.
Junto do João eu vi o desvelo de seus pais na tarde em que junto deles um pouco me demorei, a resignada aceitação que é fruto do amor e uma serena alegria que partilham com os amigos quando lhes povoam um pedaço da imensidão da tarde.
O João frequenta o Internato Victor Fontes. Vai e vem, acompanhado, e lá recebe a natural atenção que a escola, que assim pode chamar-se, lhe pode também oferecer. E onde os dias também não sempre iguais e diferentes. Como em casa de seus pais.
O João é um artista. E normal é que o seja, neste mesmo jeito de ser diferente. Já foi pintor, vocação de que a seu tempo se desviou. Agora o João constrói em “ponto de cruz” um universo de imagens que recupera dos desenhos da NET em judiciosas buscas e que depois interpreta, desenho e cores que resultam, no términus dessa ingente tarefa do cruzamento dos miúdos pontos de cruz sobre a brancura do tecido, num cativante produto final, perfeitíssimo na execução.
Paisagens idílicas, podem ser, também flores, mas ele busca desafios que vence, a si próprio como que se superando quando reinventa na tela os difíceis nós dos marinheiros, a mecânica histórica dos velocípedes, a complexidade heráldica de um brasão clubístico, o arrojado colorido de uma natureza-morta.
O João não falou comigo nesse fragmento de tarde que passei na casa de seus pais. Essa comunhão da linguagem verbal é apenas partilhada pelos pais e na escola. Que a da escrita, essa tem também seu registo próprio, códigos incertos para incertas horas, mensagens que desvelam estados de alma, que uma alma lá dentro tem sua raiz e sua força, tal e qual como essa natureza de homem que menino não deixou de ser, como nós.
Dessa tarde ficou-me sobretudo o registo de uma cruz mil vezes bordada na brancura de uma tela e nela, nessa cruz, eu vi multiplicada a cruz que transportamos, cada um, as do João que encontram Cireneu dócil e afectuoso na mansa ternura da mãe que o olha sorrindo, na tranquila coragem do pai que permanece ao lado. E o aperto da mão do João. Irmão de cada um.
E a mensagem deste texto: – Que uma sala de exposições se ofereça para mostrar, a “ponto de cruz”, em quadrinhos, as “obras de arte” do João.