“OS MARTÍRIOS”: CANTOS QUARESMAIS EM VÁRZEA DE CALDE

  Não longe de Viseu, na povoação de Várzea dita de Calde onde não há muitos anos se implantou um museu de natureza etnográfica – A Casa de Lavoura e Oficina do Linho que intenta restituir uma viva memória de um tradicional viver agrícola e mesteiral e onde o ciclo do linho se apresenta com […]

  • 21:55 | Domingo, 29 de Março de 2015
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Não longe de Viseu, na povoação de Várzea dita de Calde onde não há muitos anos se implantou um museu de natureza etnográfica – A Casa de Lavoura e Oficina do Linho que intenta restituir uma viva memória de um tradicional viver agrícola e mesteiral e onde o ciclo do linho se apresenta com densidade maior, permanecem vivos alguns registos de uma ancestral cultura que têm resistido à folclorização e de que são exemplo a Queima do Toco de S. Francisco realizada todos os anos no dia 3 de Outubro e o canto de Os Martírios do Senhor que se alonga Quaresma fora, em cada ano.

São estes cantos que eu agora evoco e os passos dos homens, que apenas a homens se consigna este acto devocional,  que os cantam, dia a dia, sem pausas, entre Quarta-feira de Cinzas e Quinta-feira Santa.


Reúnem-se em sítio marcado por padrão devocional, capela, nicho com altar devoto ou cruzeiro, num tempo em que as noites são longas e frias, de começo, pouco mais que uma dúzia, no habitual e organizam-se em quatro grupos de três ou quatro e cada um dos grupos assenta seu pouso ao longo de uma rua, guardando distâncias médias de cinquenta metros entre eles.

O primeiro grupo inicia o acto devoto cantando a primeira estrofe do canto dito Os Martírios rompendo depois para uma quinta posição enquanto o segundo grupo canta a segunda estrofe desse longo canto que comporta dezassete, cada uma delas evocando parcela do corpo de Cristo martirizada na Paixão, cabeça, olhos, mãos, lados ou cinta, etc.

A rota segue percurso previamente determinado, diferente em cada dia, no sentido de permitir a cobertura de todos os arruamentos da aldeia que se mantêm desertos nessa hora em que estão recolhidos os homens e os gados, quando o silêncio impera nessa mística atmosfera onde as vozes dos cantadores apenas se cruzam com o manso ruído das águas de uma bica de fonte ou o cantar dos ralos e dos grilos nas hortas marginais quando a Páscoa é mais tardia e mais quente o findar do dia.

Desdobra-se a temática dos cânticos e cabe a um dos grupos saudar As três Marias, mulheres que assistiam Cristo e os Doze nas andanças pela Galileia e se mantiveram junto à cruz em Sexta-feira Santa e logo outro grupo entre a cantar o Converte-te, apelo intenso ao abandono de caminhos de pecado. Depois celebram-se As Almas do Purgatório lembrando-se ao povo o seu resgate através das metafóricas “migalhinhas” feitas de esmola e oração.

A Virgem não veio não esquece a mediação de Maria, Mãe de Jesus, no drama da Redenção. Depois voltam a lembrar-se as Almas do Purgatório no canto dito À Porta das Almas Santas e, quando este canto termina, o grupo de cantores reúne-se à beira da Capela de S. Francisco ou do Cruzeiro da praça nova da aldeia e canta em uníssono o último canto, Ó Cristão olha que é Terra, apelo sentido que atravessa a escuridão da noite ou, às vezes, uma atmosfera luarenta de Lua Cheia e entra, como é propósito, nas moradas onde, recolhidas, as famílias seguiram os passos dos homens e o seu canto de informal catequese.

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