Martins perde para Rebelo
São poucos, muito poucos mesmo,» escreve Gil Moreira na revista Stadium de 3 de Maio, «os corredores de bicicleta que têm a verdadeira noção das suas possibilidades.
O desporto e a vida fazem-se na presunção de autoconhecimento sobre o valor do ser e da acção. Estas subtilezas ocorrem nas narrativas de ciclismo sob a forma de tenacidade ou inconstância, ousadia ou temor, valia ou irrelevância, vitória ou derrota. Poucas vezes, o redactor ousa falar de vaidade e presunção. Uma dessas raras menções sucedeu após a última prova do campeonato distrital de fundo, que percorreu as estradas entre Lisboa, Merceana, Torres e Ericeira em final de Abril ou início de Maio de 1944. Os 176 quilómetros deram uma vitória brilhante a João Rebelo. José Martins deu luta. Túlio Pereira teve furos e esteve menos bem. A quem assenta o comentário inicial, expendido por Gil Moreira, acerca do excesso de autoconvencimento?
«São poucos, muito poucos mesmo,» escreve Gil Moreira na revista Stadium de 3 de Maio, «os corredores de bicicleta que têm a verdadeira noção das suas possibilidades. Normalmente, a maioria, quando vence, exagera na análise dos seus atributos, chegando mesmo a diminuir o valor dos adversários. Se são vencidos, raras vezes tomam isso como reflexo da superioridade dos seus companheiros de luta, apresentando, para motivo da derrota, a infelicidade nas provas e as dificuldades que tiveram de vencer, chegando até a considerar-se vítimas de pretensas irregularidades cometidas por aqueles com quem se batem.»
«Rebelo, que no primeiro terço da corrida teve de mudar duas vezes de máquina, “recolou” sempre com à-vontade surpreendente. Depois, quando ficou sozinho com Martins (e isto deu-se a mais de cinquenta quilómetros da meta) nunca se recusou a entreajudar o homem de Sangalhos, fazendo-o de tal maneira que ninguém conseguiu aguentar-se na “roda” desse endiabrado duo de fugitivos. Mais tarde, ao atacar na rampa de Caneças, fê-lo com tal convicção que Martins teve de ceder, apesar de ter ainda podido “colar-se” por momentos à roda do “iluminante”. E, por último, após haver neutralizado, nos longos quilómetros da descida de Caneças ao Senhor Roubado, a vantagem adquirida por Martins, e ao descer com mais alguns centímetros de “desmultiplicação”, o mesmo Rebelo impôs de tal forma a sua superioridade a subir que, desde o meio de Carriche até à pista, ganhou nada menos de dois minutos ao seu valoroso adversário. Isto diz tudo acerca do comportamento do possante estradista.»
Gil Moreira pode ter as suas preferências, mas é um analista rigoroso. «Por seu turno,» diz ele, «Martins valorizou-se bastante no segundo terço da prova, enquanto tentava, por sinal com êxito, distanciar João Lourenço, que tinha mudado de máquina.» Aqui, Gil Moreira passa para outro parágrafo. «A sua marcha uniforme, em luta contra a brisa que soprava de frente, desde o alto da Picanceira até às Carvoeiras, deu de facto momentos de grande valia à competição. No entanto, onde Martins mais se valorizou e onde a sua acção chegou mesmo a ser brilhante foi na perseguição feita entre Caneças e Carriche. Neste troço da prova, Martins ganhando terreno a descer e Rebelo a distanciá-lo nas subidas curtas do percurso, a luta tornou-se emotiva e rodeou-se de valor atlético incomparável.» João Rebelo cumpriu os 176 quilómetros em 5 horas, 12 minutos e 11 segundos, e José Martins em 5 horas, 14 minutos e 10 segundos. João Lourenço, do Sporting, foi terceiro. Noé, do Sangalhos, ficou em sétimo, ou seja, penúltimo.