Maria de Jesus – Tecedeira
Maria de Jesus cumpriu seu destino de tecedeira. Cumpre seu destino de mulher, aquele que a vida lhe talhou.
Chama-se Maria de Jesus Gonçala (Gonçala, mesmo assim) Chaves. Nasceu em Várzea de Calde nos começos de Dezembro de 1940. Várzea que foi sempre a terra onde viveu e onde se acolhe agora, cumpridos muitos anos de labuta, em casa de irmã que, como sempre, lhe abre as portas de sua casa na quadra de uma idade em que o corpo se dobra para o chão, quando os passos já fraquejam nesse ainda almejado labor do dia-a-dia que fica por fazer, a teia urdida, as apeanhas esperando o ritmado balancear desse compasso sustido por um surpreendente quebrar de melodia.
Maria de Jesus aprendeu a tecedeira com a avó, Ana dos Santos, que ali, na Várzea, era com as avós, ou com as mães, que as raparigas aprendiam os ofícios do fiar ao tecer, que os linhos cresciam bastos nos chãos de boas águas, que os panos de linho precisos se tornavam para vestir homem e mulher, enxoval de noiva com lençóis bordados, arcas perfumadas de alfazema e lá dentro toalha de Páscoa, de baptizado, toalha de altar, como voto, ou corporal de rito sagrado, quem sabe, toalha branca do dia-a-dia revestindo mesa de festa, chão de eira para merenda de malhadores, alvas de neve graças à cora, ao sol, à água das tardes da lameira.
Maria de Jesus cumpriu seu destino de tecedeira. Cumpre seu destino de mulher, aquele que a vida lhe talhou.
Leva trinta anos de Casa da Ribeira, em Viseu. Ela e o seu tear. Vinha de manhã e soltava do ofício ao dobrar da tarde, quando as portas se encerravam. Ouvia-se lá dentro o riso dela e o incansável bate-que-bate das apeanhas e a lançadeira correndo e o seco bater das queixas apertando a trama, as horas que nunca se contavam até ficar pronta a teia, pano branco de linho, colcha de algodão com desenhos pintados, manta de trapos, às vezes.
Maria de Jesus era feliz no seu ofício. Gostava que a gente que ali entrava, ao jeito de Museu, na Casa da Ribeira, parasse à sua beira. E ilustrava, bondosa, com palavras, o seu jeito de tecer. E do seu jeito de falar ficavam suspensas as turmas de crianças. Cumpria missão de educadora.
Faz-se agora mais silêncio na Casa da Ribeira. Da Maria de Jesus ficam ali trinta anos de memória. E o seu tear, que ela quis que ali ficasse. Que o seu nome bem merece que ali, numa tábua qualquer, possa ser escrito. De bronze não falo, que a mim não pertence. Mas talvez alguém se lembre de entregar-lhe uma medalha numa sessão solene, na casa de todos, ao Rossio, quando o próximo dia 21 de Setembro se cumprir.