Eucaliptos alentejanos
Nada tenho contra as belas seges, traquitanas e carruagens do tempo de D. Maria I e II, e dos abastados proprietários das redondezas, mas prefiro os churriões, essas carruagens distintas, que ficam tão bem nas estradas como os sobreiros na paisagem que deles se avistava antes de o rei D. Carlos partir deste local para ser morto, a tiro, à chegada a Lisboa.
Os eucaliptos alentejanos lembram-me uma horda de bárbaros invasores. Estão às portas de Portalegre, prontos para avançar sobre as planuras de sobreiros e azinheiras. Alguns nascem sozinhos e misturam-se com a vegetação do lugar. Outros assumem formações quadrangulares. Muitos estão alinhados, a perder de vista. Vieram do norte, onde são temíveis, e pretendem dominar as terras secas, onde são absurdos.
Quando saímos da Curia e reli o roteiro escrito na véspera, à pressa, havia duas coisas que não esperava: os eucaliptos e o riso provocado pelos meus apontamentos. Num tempo em que se usa sempre GPS, escrevi, sem setas nem chavetas, o seguinte: «Na Mealhada, tomar a A1 antes de Condeixa-a-Velha. Sair na saída 11 em direcção a Lousã, Soure, Condeixa. Continuar até A13, saindo na direcção para Lousã e Tomar. Para isso, temos de tomar a IC8.» Foi aqui que a Eugénia começou a rir e a ler em voz alta. «Apanhar IP2 na direcção Évora e Elvas. Seguir pela estrada 381 até ao destino. Para ir para Elvas, seguir a EN246 em Portalegre. Temos, portanto, de passar por Estremoz.» Este portanto, rigorosamente entre vírgulas, levou-os às lágrimas. Acho que a Rita disse que isto era mesmo à pai e o Bruno fotografou a folha para a espalhar pelos amigos. Eu, encabulado, dei explicações inúteis e admirei-me que notas tão simples tivessem tanta graça. Depois, começaram a aparecer as ditas árvores e a paródia desapareceu.
Em Évora, tudo parece certo. Está lá o templo romano, as ruas quase sem mácula, os traços mudéjares do Palácio Cadaval, edificado sobre um castelo muçulmano. Tentei recordar-me, inutilmente, dos factos que levaram D. João II a falar de tempos de coruja e de falcão. Confundi o duque de Bragança com o de Cadaval, como se este último título não tivesse sido criado na Restauração. Só recordava a degolação perpetrada no rossio de Évora, em 1483.
Nesse tempo, não se sabia da Austrália e muito menos das espécies vegetais que lá havia. Mesmo os monges do Convento de São Paulo, que no século XVIII se afadigaram a dar grandeza a um edifício por onde passou D. Sebastião, ignoravam essa arborescência exótica. Nas noites quentes de Verão, tinham outros interesses. Olhavam a planície e a serra d’Ossa, escutavam os ruídos da natureza, creio que não podiam conversar, como agora fazem os turistas, deambulando por claustros e corredores, subindo escadas e parando a admirar a biblioteca adormecida na penumbra.
Andámos, desconfiados, de cidade em cidade, temendo o reaparecimento dos bárbaros. Não os reencontrámos. E daqui a vinte anos? Avançarão ou serão retidos e expulsos? A planície continuará definida por azinheiras à contraluz ou a ondulação será escondida por essa vegetação desabrida? Ganhamos agora ou perderemos amanhã?
Pensei nisto, muito sisudo, no Convento do Espinheiro, antes e depois de nos termos estendido na piscina quase sobranceira à cidade de Évora. Temo que me acusem, se não hoje, daqui a trinta anos, de ser tão insciente da ecologia como os caudilhos dos eucaliptais. Podemos ser contra as suas ramagens aromáticas e admitir que tanta água se concentre num tanque para prazer e repouso do espírito? Não nos bastam as salas frescas, a igreja, as cenas azulejares de São Jerónimo? As viagens já não se fazem sem o medo do pecado ambiental?
Ao terceiro dia, em Monsaraz, diminuiu a obsessão. Preferíamos a vila mais viva, mas não atulhada como Sintra em Agosto. Se estivesse mais povoada, perderíamos a letargia dos espaços, a longa duração e o silêncio, de que tanto se gosta e que tanto se teme. Queríamos mais limpas as paredes do castelo de Évoramonte, mas alegrámo-nos com a conservação dos interiores. Na povoação, os muros de pedra solta desconjuntam-se, mas são, sem dúvida, os que se fizeram há um século. A casa onde se assinou o tratado de paz, em 1834, é credível. Pode bem ter sido nela que os miguelistas depuseram as armas. E tudo se vê no mais completo sossego. A Rita, que foi leitora integral dos livros Uma Aventura e espectadora reiterada da série televisiva, dirigiu uma reconstituição cinematográfica, na qual o Bruno foi realizador, a Eugénia e a Rita actrizes e eu actor e cantor a cappella. Espero, em Deus, que, por Sua misericórdia, esses minutos de vídeo nunca saiam do cofre em que devem jazer, aferrolhados, até ao seu desaparecimento natural.
Em Vila Viçosa, numa rua quieta, sentados numa esplanada de madeira, sem mais ninguém, o senhor José serviu-nos polvo e porco, tudo bem temperado. Eram raros os automóveis e poucas as pessoas. O café e restaurante foi buscar o nome a Florbela Espanca. O proprietário tinha a espontaneidade que faltou aos dias da poetiza. Atravessei a via para lhe pedir uma bebida, e ele, com uma franqueza desarmante, que dimanava da sua simpatia congénita, disse-me, já a abrir o frigorífico:
– Pode levar. Escuso de ir atrás de si.
Este episódio é muito diferente daqueles que se viviam no palácio ducal quando por lá andavam D. Teodósio, D. Jaime e D. Carlos. Na cozinha trabalhavam trinta e cinco criados, as cavalariças tinham lareira e as salas cobriam-se de retratos de José Malhoa, tapetes persas e de Arraiolos e tapeçarias de Gobelins. Em 1914, quando se faziam as primeiras experiências de aclimatação do eucalipto em Portugal, ainda se construíam churriões, como o que vimos exposto, de cobertura redonda e entrada traseira. Nada tenho contra as belas seges, traquitanas e carruagens do tempo de D. Maria I e II, e dos abastados proprietários das redondezas, mas prefiro os churriões, essas carruagens distintas, que ficam tão bem nas estradas como os sobreiros na paisagem que deles se avistava antes de o rei D. Carlos partir deste local para ser morto, a tiro, à chegada a Lisboa.
(Fotografia MEP)