AQUILINO RIBEIRO – PASSAGEM PELA “QUELHA DA HORTA” (VISEU)
A “Quelha da Horta” é ainda uma bem desenhada artéria na geografia física e antiga de Viseu e talvez seja a mais estreita viela que a cidade guarda, ali a meio da Rua do Arco, entre os números de polícia dos portais do casario a que se encosta (100 e 102), numa das faces o […]
A “Quelha da Horta” é ainda uma bem desenhada artéria na geografia física e antiga de Viseu e talvez seja a mais estreita viela que a cidade guarda, ali a meio da Rua do Arco, entre os números de polícia dos portais do casario a que se encosta (100 e 102), numa das faces o muro da oficina do Mestre de Serralharia Artística, Arnaldo Malho, que aqui se evoca, amigo do peito desse outro Mestre das Letras, Aquilino Ribeiro, que habitou paredes meias ainda que em tempos desfasados. Três dúzias de passos, que pouco mais se alonga a quelhazinha nessa linha de Norte e Sul, mas tempo houve em que seu cotovelo se dobrava e, encostada ao velho muro da cerca dos Albuquerques desembocava sobre o exterior da Porta dos Cavaleiros onde houve abonado tanque de água e onde beberam, decerto, os cavalos da traquitana do Guilherme antes de partirem para Barrelas e onde houve também oficina aberta de ferrador.
Quando ali passo, na “formiguenta” Rua do Arco de antanho, sempre reparo na viela e vezes há em que dela espreito, por estranho desfastio, a nesga de céu que o amanhecer do sol veste de azul. Quando ali passo lembro-me de Aquilino que ali se aboletou, na pensãozinha da Senhora Joaquina com porta aberta para a Rua do Arco, a principal, e entrada de serviço pelo braço da quelhazinha, porta que ainda ali está, meio entaipada apenas, para que a memória ao menos permaneça. Aquilino que assinara leve contrato para uns meses de um Verão antigo, estudante com outros seus iguais, uns e outros sem definição clara de caminhos nesse ardor de uma juventude primeira quando a gente se esquece de que a vida é encruzilhada e a confunde com estrela.
Aquilino não viveu agradado na pensão. De “passadio” era sofrível, que ele isso perdoava, mas a dona perdera a frescura dos anos e quase se lhe azedara a alma, parece, o “lampianista”, seu marido, era um homem apagado como os seus lampiões ao amanhecer, Ângelo, o filho mais novo aprendera a sapateiro e lhe rareava a freguesia, Augusto recebera ordens canónicas cujo grau Aquilino não chegou a decifrar, e da rapariga que depois aprendeu a professora nem o desenho das feições lhe ficara na lembrança.
E da pensão Aquilino recorda as travessuras do clérigo de incerta vocação e a resposta armada e pronta a uma sua bruta cilada. E as palavras de enxovalho da “megera” da senhora Joaquina, e a balbúrdia que se gerou, à gritaria dela, na Rua do Arco, na meia manhã, talvez desse também quente mês de Julho do ano do Senhor de 1902.
Aquilino calçou os sapatos, sacudiu o pó como Cristo mandara fazer aos discípulos sempre que os enviava a lugares onde os não recebiam, pegou na “maleta” e foi hospedar-se na Pensão Milheiro, à Rua do Gonçalinho, onde seus donos, gente de Bandavizes, era “simples, boa e afável”.
Pouco mais de um mês, porventura, exame feito, ei-lo que embarcava para outra jornada. Bem longe ainda de Ítaca!…