A Senhora das Neves (Gradiz, Aguiar da Beira)
Era já noite. No céu, o luar de Agosto refulgia na brancura da terra tornada toda igual. Homem e cão, esfomeados e enregelados, perdidos no meio da serra, começaram a andar sem destino, como à procura de uma luz, uma pequena e tremeluzente luz que indicasse um pobre cardanho onde pudessem descansar o corpo dorido pelo frio. Talvez houvesse uma quente malga de sopa adubada como o resto do toucinho perdido na salgadeira e um pedaço daquele escuro pão de centeio. Talvez … mas os cardanhos, se os havia, sumiam-se sob o manto branco e nenhum luzeiro espreitava ao longe.
Conta-se que há muitos anos, alguns séculos talvez, um caçador, homem rico a avaliar pela espingarda de pedreneira que levava a tiracolo, última novidade para o tiro, acompanhado pelo seu fiel perdigueiro, foi caçar para o planalto da Lapa. Agosto ia no início, tempo de canícula, de dias bem longos e de luares tão redondos e luzidios que a noite mais se parecia com o raiar da alba.
O caçador, com o seu fiel perdigueiro à ilharga, percorria dolentemente as veredas estreitas da serra crestada pelo sol inclemente do pino do verão. Pouco se tinha servido da espingarda, dois ou três tiros ao acaso, que a caça sumira-se entre as lapas, abrigando-se do calor impiedoso do meio da tarde. Cansado, sentou-se repousado à sombra de um frondoso castanheiro. Do elegante alforge sacou uma perna de frango e um naco de pão alvo.
A seguir destapou o cantil onde repousava um vinho de estalo e preparou-se para comer o frugal repasto. O perdigueiro, que se refastelara no chão atapetado de folhas secas, descansou o focinho na coxa nutrida do dono esperando pelo osso sabiamente descarnado. Porém e ao mesmo tempo, uma profunda sonolência apoderou-se do dono e do cão. Qual bela adormecida, o caçador quedou-se a dormir com a perna de frango especada na mão. O cão, baixando as orelhas, fechou também os expressivos olhos tristes. E assim foi correndo a tarde.
Não se sabe bem porquê, ainda estava bem longe o tempo em que as alterações climáticas faziam parte da agenda de militância ecológica e política, as condições atmosféricas alteram-se significativamente. O calor sufocante da tarde deu origem a um frio agreste. O céu azul e sem nuvens ficou carregado de inverno e, naquele fim de tarde, flocos de neve começaram a cair… e caíram ininterruptamente cobrindo tudo, fragas, árvores, vegetação rasteira, flores garridas, animais e gente …
O caçador e seu fiel perdigueiro, caídos num intenso e prolongado sono, numa espécie de anestesia incompreensível, não deram conta da transformação operada. Se dormiam quando o sol estava mais quente, a dormir estavam quando a neve, com o seu manto branco, tapou tudo e todos. Pouco a pouco, dono e cão começaram a sair da letargia em que tinham mergulhado. Primeiro o perdigueiro, levantando a orelha esperta como a perscrutar o tilintar do silêncio, depois o caçador invadido por um frio primordial.
Era já noite. No céu, o luar de Agosto refulgia na brancura da terra tornada toda igual. Homem e cão, esfomeados e enregelados, perdidos no meio da serra, começaram a andar sem destino, como à procura de uma luz, uma pequena e tremeluzente luz que indicasse um pobre cardanho onde pudessem descansar o corpo dorido pelo frio. Talvez houvesse uma quente malga de sopa adubada como o resto do toucinho perdido na salgadeira e um pedaço daquele escuro pão de centeio. Talvez … mas os cardanhos, se os havia, sumiam-se sob o manto branco e nenhum luzeiro espreitava ao longe.
Durante muito tempo caminharam em círculos, ora subindo ora descendo desconhecidas veredas, sem se importaram com os camuflados precipícios da serra, ouvindo ao longe o uivar dos lobos frequentes naquelas paragens. Quando uma nuvem pesada acabava de tapar o estranho luar de Agosto naquela noite de invernia, tornando tudo mais soturno e doído, o desespero apossou-se do caçador rico que se rojou por terra implorando: “valha-me Nossa Senhora”, logo ele que não era dado a rezas nem a beatices.
Foi então que o caçador e o seu fiel perdigueiro, depois de subirem as escadas gastas por muito uso, foram recebidos por uma porta escancarada e o sorriso simpático da dona da casa que os levou – ao dono e ao cão – para uma ampla e aquecida cozinha, onde crepitava um fogo alaranjado, bom para secar o corpo, aquecer a alma e a sopa olorosa que borbulhava na panela de três pés.
Alimentados e secos – o dono e o cão – chegou a hora do relato de tão inusitado acontecimento à roda dos vizinhos que se tinham acomodado junto à lareira. O caçador, que era homem de bonitas e elaboradas falas, contou o que lhes tinha acontecido, deixando todos estonteados de surpresa por a senhora se ter lembrado daquela terra encravada num vale por onde ninguém passava.
E o dia amanheceu radioso como um normal dia de Agosto. O caçador e o seu fiel perdigueiro tornaram a casa não sem terem tomado um lauto almoço e de levarem o bornal atascado de tão boas vitualhas que só de pensar nos nasce água na boca… O povo, esse, ficou tão grato à senhora que passou a celebrá-la todos os dias 5 de Agosto, o dia da insólita nevada e do inusitado salvamento do caçador e do seu fiel companheiro.
A aldeia do vale chama-se Gradiz e a Senhora das Neves a sua santa padroeira, com destaque no altar-mor da igreja matriz. A festa continua a fazer-se todos os dias 5 de Agosto.
A lenda aprendia em pequena em casa dos meus avós paternos, precisamente em Gradiz.