No Céu com o Padre Voador

Tenho um sonho enorme. Do tamanho do oceano, para ser mais concreto. Quero recriar, num avião ultraleve, a épica viagem que mudou para sempre o curso da aviação mundial: a travessia do atlântico sul que notabilizou o malfadado Sacadura Cabral e o notável Almirante Gago Coutinho.

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  • 10:22 | Segunda-feira, 16 de Janeiro de 2023
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O Padre Cristóvão Cunha foi meu aluno há duas décadas, na ESEN, em Viseu. Nessa turma, maioritariamente de meninas, estava ele e o Márcio, hoje um distinto advogado. Tão distinto quão o é o Padre Cristóvão, para os amigos o Padre Voador, um padre moderno, dos tempos de hoje, culto, amante da teologia, da astronomia e da aviação. Quase que me atrevo a dizer que criou uma correlação lógica entre estes três aspectos, mas deixo ao leitor a dedução…

Esta semana fui voar com o Padre Cristóvão, num ultraleve, com descolagem do aeródromo de Viseu.

Durante mais de uma hora andámos nas nuvens, não distantes dos pássaros, vogando no vento, mais perto do Céu.


Mais didacticamente do que eu terei sido enquanto docente, explicou-me todas as operações ao pormenor, com rigor e clarividência. Se algum temor levava, eu que sou terráqueo com concessões aquáticas, célere o perdi, perante a assertiva segurança do Padre Cristóvão.

 

Fomos dizer um olá a Vila Real, e enquanto íamos falando pelos intercomunicadores, discorremos sobre Torga e Aquilino, passando por São Leonardo de Galafura e pelo Carregal de Sernancelhe, terras dos dois grandes mestres da literatura portuguesa.

Acompanhámos o Douro, o Távora, o Varosa, o Balsemão, o Coja, cruzámos o Vouga e descemos o Vale do Dão… passámos pela barragem do Vilar, quase na sua cota ideal, e num instante sobrevoámos Aguiar da Beira, Vila Nova de Paiva e lestos regressámos a Viseu.

O tempo voa. Também o Padre Cristóvão e, desta feita, à boleia, também eu voei, fascinado com as sucessivas paisagens, tirando fotografias a torto e a esmo…

É bom ter um Padre assim, que nas asas da avioneta nos leve até ao Céu…

 

 

RD: De onde vem este epíteto de o “Padre Voador”?

PCC: Foi uma ideia recente. É bastante raro nestes dias ser-se padre. A probabilidade de que um padre em vez de motard possa gostar de aviões e ter o brevet ainda mais raro. Por isso achei que seria um belo epíteto.

 

 

RD: Porquê a opção pelo sacerdócio?

PCC: É uma longa história. Começou com as primeiras questões de pequenino, a servir ao altar como acólito na minha paróquia. E foi algo que fui amadurecendo com o tempo e com as respostas que foram surgindo paulatinamente à medida que abria caminho.

 

RD: Porquê voador?

PCC: Também é uma longa história. Mas a paixão pela aeronáutica veio de outra mais antiga ainda, da exploração espacial e da astronomia. Voar será das experiências mais recompensantes. E sobretudo a aviação de lazer, em aviões pequenos, voar é como vestir o avião. E poder voar com os elementos é impagável. Daí vem o adágio, velho como a aviação: “só nós sabemos porque é que os pássaros cantam”. Poder voar meia ou uma hora depois de uma semana intensa de trabalho é terapêutico. Como a pesca sem o risco de perder boias e anzóis. Por momentos deixar tudo, e voar.

 

RD: Qual a origem deste gosto pelas alturas, pelo voo?

PCC: Começou, números redondos, há cinco anos a vontade de fazer o curso. Pelas piores razões. A morte pode por vezes ser madrasta e perdi um primo, da minha idade, a quem queria como um irmão. E ele morreu com a sensação que não vivera. E pediu-me que o fizesse por ele. Tirar a licença e voar vai de encontro a esse seu desejo. Se não fosse esse gatilho, provavelmente iria protelar este sonho até que fosse impossível a sua realização, como acontece nas nossas vidas com tantos sonhos e projectos.

 

 

RD: Neste contexto, quais os planos que gostaria de concretizar num futuro próximo?

PCC: Tenho um sonho enorme. Do tamanho do oceano, para ser mais concreto. Quero recriar, num avião ultraleve, a épica viagem que mudou para sempre o curso da aviação mundial: a travessia do atlântico sul que notabilizou o malfadado Sacadura Cabral e o notável Almirante Gago Coutinho. Ainda hoje, 100 anos depois da façanha, continua a parecer uma loucura fazer a travessia num avião monomotor. Há 100 anos atrás mais ainda. Não é de estranhar a importância que granjearam na cultura popular. 
Fazer o voo vai de encontro ao que procuro na aviação, e será um hino aos egrégios avós a quem tanto devemos. 

 

RD: Sabemos que o Padre Cristóvão tem ainda o gosto pela astronomia. Como o cumpre?

PCC: Já estive mais ativo. A astronomia devia ser o hobby natural de cada humano. Pela acessibilidade (basta olhar o céu) e pelo que implica nas nossas vidas. Não falo da tolice dos horóscopos, falo da maneira como fomos desenhando as nossas vidas à volta dos princípios astronómicos. Os horários, a mudança de hora duas vezes por ano, os fusos horários, os horários de trabalho, as luas, as marés, os partos, as sementeiras.

 

Construí um pequeno observatório astronómico, batizado Stella Maris, faço observações pontuais, e astrofotografia. Nos verões subo à serra (da Freita) para falar das maravilhas que se fazem ver todos os dias. Mas como disse, cada noite, basta tirar os olhos dos feed’s com que nos vamos alimentando, e olhar o infinitamente grande que nos rodeia e questiona.

RD: Andar sobre as nuvens afasta-nos da realidade terrena?

PCC: Certamente podemos desfrutar do voo, e pode ser terapêutico e higiénico como lhe costumo chamar, mas, mas isso não faz com que desapareçam os problemas. Quando aterrarmos cá estão à nossa espera. Mas se os vemos de cima, certamente que os veremos com outros olhos. Já se sabe, só sabemos que estamos na ilha, se sairmos da ilha. Acho que o voo ou outro hobby tem esse condão. E fazem sentido também por causa disso.

 

 

RD: Qual o seu mais arrojado e distante voo efectuado?

PCC: Não diria arrojado. Os voos, por maiores que sejam, carecem sempre de muito trabalho de casa, muito trabalho e preparação feitos no chão. Ver a meteorologia, os espaços aéreos, alternantes no percurso e do destino, combustível disponível, planos de voo. Mas o maior que fiz até agora foram 1000 milhas náuticas (ou 1850km) desde a fronteira com a Eslovénia até Portugal. Não foi seguido, foram seis legs (etapas) de duas horas cada, mais ou menos. Mas poder sobrevoar a diversidade no percurso, desde a Pianura Padana, os Alpes ítalo-franceses, a Côte d’Azur francesa e a planície de Castela em tão pouco tempo, e com a visibilidade de uma ave, é de facto, um privilégio.

 

 

RD: Encontra alguma correlação espiritual no exercício do sacerdócio, no voo e na astronomia?

PCC: Não diria dessa maneira. Mas poder contemplar a natureza como a vê uma ave, poder observar objectos do céu profundo a milhões de anos-luz, tem que nos fazer questionar sobre as questões mais básicas e existenciais. Deus não o vemos, mas atribuir o cosmos (ordem) ao acaso, parece-me impróprio.

 

RD: Em plano metafórico, nas alturas sente-se mais próximo de Deus?

PCC: A proximidade não tem a ver com alturas nem altitudes. Sinto-me sobretudo privilegiado por poder voar, contemplar a criação e ver tudo de uma perspectiva diferente.

 

RD: Como é seu o dia-a-dia profissional?

PCC: Sou pároco de cinco paróquias, Manhouce, Valadares, São João da Serra, São Cristóvão de Lafões e Santa Cruz da Trapa, nos concelhos de São Pedro do Sul e Oliveira de Frades. É muito terreno para calcorrear. De avião seria mais rápido as deslocações. Nas paróquias até brincam com a construção de um aeródromo paroquial. Eu brinco também. Seria o primeiro, último e único. Procuro guardar um dia para mim na semana. A segunda-feira. Mas nem sempre é fácil conseguir. Além das celebrações nas cinco paróquias e vinte seis capelas, e diria que as celebrações são a parte visível da vida dos padres, a verdade é que 90% do trabalho dos padres passa despercebido ao olho incauto de quem veja de fora. Além das celebrações, temos os centros sociais com tudo o que lhes diz respeito, as reuniões de direção executiva e Técnica, as catequeses e reuniões com os vários grupos de co-responsabilidade, a visita aos doentes, o sacramento da reconciliação, da unção dos doentes. Mas acima de tudo, o padre é chamado a ser testemunha, onde está, de um Deus humanado, que se fez próximo de todos e de cada um. Assim, independentemente da esfera em que se movam, são chamados a ser Sinal. No Aeroclube, no grupo de motards, no meio dos amigos, nas famílias que o convidam e recebem para uma refeição. Primeiro abrem a porta e com ela abrem a vida. E o maior privilégio como sacerdote é poder caminhar com tanta gente.

 

 

RD: Quer deixar alguma mensagem, nomeadamente para os jovens?

PCC: Que sejam gratos. Os tempos que atravessamos são demandantes. E exigem muito de todos, sobretudo dos jovens. 
No início do novo ano, somos cilindrados com a comunicação social que nos diz que é tudo mau. Que subirá o preço do IMI, do IUC, das portagens, da luz, da água, da farinha. E nós, de barriga cheia entramos na onda. E a verdade é que somos ingratos. Há, e bem perto, gente que perdeu a casa e não tem que se preocupar com o IMI, que deixou de poder pagar o carro e por isso não tem que se preocupar com o IUC e as portagens, que não tem pão para pôr na mesa dos filhos. E por isso devemos ser gratos pelo que temos e somos

Há uma frase que vou repetindo como mantra. A única coisa verdadeiramente irreparável é a morte. Tudo o resto é passível de ser resolvido. Haja gratidão pelo que temos e somos. E fé. Não apenas em Deus. Precisamos de acreditar em nós também. Somos incríveis. Capazes de coisas notáveis. Assim haja vontade.

 

 

RD: Já sentiu receio ou medo, no ar? E na terra?

PCC: É curioso. Mas não. Não tenho medo. Nem da morte. Sem querer entrar em detalhes, não gostava de morrer antes dos meus pais. Nenhum pai deveria ir ao funeral do filho/a. Mas de resto não tenho medos. Ser sacerdote permitiu-me conhecer histórias verdadeiramente notáveis. E o contrário também, sórdidas, pesadas e tristes. Conhecer a dor alheia faz com que vejamos de uma maneira diferente as nossas. Como diziam aos soldados nas enfermarias na segunda grande guerra, a dor é tua amiga, recorda-te que estás vivo.

Assim sigo, vivo e grato, mas sem medo.

 

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