Moimenta da Beira inaugura estátua de Aquilino Ribeiro

Ah… mas os lobos, esses são outra história… Na sua indómita voracidade, ostracizados e temidos, feras, eles uivam, aliás como os homens, mormente nos tribunais plenários de má memória, uivam aqueles, naturalmente, por fome, estes, já por medo, por ira e por cólera.

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  • 18:56 | Segunda-feira, 28 de Fevereiro de 2022
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No passado dia 26 de Fevereiro, pelas 15H00, Moimenta da Beira viu o seu Largo do Tabolado doravante engalanado com a estátua do escritor Aquilino Ribeiro, por três lobos rodeado.

 


 

Iniciativa do cessante executivo, pelas mãos do seu antigo presidente e vereador da cultura, respectivamente, José Eduardo Ferreira e Francisco Cardia, a obra da autoria do escultor Daniel Gamelas com moldes de Alcides Rodrigues, foi inaugurada pelo actual presidente da edilidade Paulo Figueiredo, o anterior autarca, José Eduardo Ferreira e os netos do escritor Aquilino Machado e Mónica Machado.

Após esse simbólico momento, os presentes deslocaram-se para o auditório camarário onde intervieram Manuel Lima Bastos, Paulo Neto, Aquilino Machado, João Xavier, presidente da Assembleia Municipal e Paulo Figueiredo presidente do Município.

 

 

O município editou um catálogo alusivo à homenagem, na ocasião proporcionado aos presentes, com textos de Paulo Figueiredo, presidente do Município, Aquilino Machado, neto do Escritor, do CEAR, de Paulo Neto e de Eduardo Boavida, director editorial da Bertrand.

 

 

Seguiu-se um “Terras do Demo” de honra.

Deixo a intervenção de Paulo Neto, enquanto director da Revista Literária da Câmara Municipal de Sernancelhe, “aquilino“.

“Esta justíssima homenagem a Aquilino Ribeiro, aqui presentificada com a sua esculpida imagem na boa companhia dos lobos dos planaltos circundantes, foi um desiderato dos cessantes presidente da Câmara Municipal de Moimenta da Beira e do vereador do pelouro da Cultura, respectivamente, Sr. José Eduardo Ferreira e Dr. Francisco Cardia, com quem, no decurso destes passados doze anos tive o grato e profícuo prazer de colaborar, em plurais eventos, neste amplo e vasto domínio que a todos congrega e empenha, o de Aquilino Ribeiro e das Terras do Demo.

Aqui lhes deixo a minha cordial saudação.

Ao actual presidente da autarquia, Dr. Paulo Figueiredo, deixo o louvor expresso pelo acto aqui empreendido, como auspicioso sinal de que, neste contexto, este executivo dará continuidade à recorrente celebração do nosso Escritor e cuidará, zeloso, dos pergaminhos que lhe foram em mãos deixados, no concreto, a exequiblidade funcional da Fundação Aquilino Ribeiro, a FAR, que, em 2011 por alteração estatutária, se viu pertença das três autarquias das Terras do Demo: Moimenta da Beira, Sernancelhe e Vila Nova de Paiva.

Isto dito e ciente de que outros melhor dissertariam sobre Aquilino Ribeiro, vos confesso que a seu tempo fui convidado pelo estimado Dr. Cardia a escrever umas linhas sobre a obra “Quando os Lobos Uivam”, hoje e aqui em opúsculo editadas, e que mais tarde poderão ler à lareira, conjuntamente com outros testemunhos, se a beiroa paciência vo-lo permitir.

A simbologia deste monumento que aqui ficará doravante, levantado do chão, como milenar marco de ancha leira representa-se no Homem e nos Bichos. Os bichos, sem desprimor no epíteto, omnipresentes na obra de Aquilino, rotulado até de “animalista”, e que vão da égua rabona Inácia, à solerte raposeta Pintalagreta, senhora de muita treta, aos cães Barzabu, Pilatas, Pata ao léu, aos gatos do Menos Sete, às galinhas da Luzia, às trutas dos corgos do planalto e do Paiva, aos pardais das suas tílias, na Soutosa, às aves da Nave e Lapa, às lebres dos cerros e matagais… enfim, uma insubmersível e genuína Arca de Noé (1963).

Os animais são corpo presente e possante na mundivivência de Aquilino, na sua geografia rústica de afectos, memórias e sentimentos. E se ao lado do homem, o serrano, “o Homem da Nave” (1954), seu amo e senhor, como servis adjuvantes do seu viver, nos agros ofereciam a força bruta para a dura e quotidiana labuta, e à mesa, no seu geral pouco farta, não fora a de cónegos em “Andam Faunos pelos Bosques” (1926), o fortalecer do minguado conduto, entre láparos e lebréus, a saciar as fomes centenárias.

Ah… mas os lobos, esses são outra história… Na sua indómita voracidade, ostracizados e temidos, feras, eles uivam, aliás como os homens, mormente nos tribunais plenários de má memória, uivam aqueles, naturalmente, por fome, estes, já por medo, por ira e por cólera.

 

 

E chegamos a 1958, ano quando Aquilino, inspirado no conflito surgido na serra da Lousã, lá para as bandas de Serpins, que confrontou os aldeões e os serviços florestais do Estado, quando ao povo retiraram os baldios para os arborizar, numa luta que gerou mortes, tiroteios, cargas de cavalaria, prisões, espancamentos, julgamentos, quando Aquilino escreve e publica “Quando os lobos uivam”, que, no dealbado crepúsculo da sua existência, o leva de novo às malhas da tal justiça, tão abusada e desvirtuada de seu nome, e indignamente vendida aos esbirros da nação. Parecida até com um “prostibulário”, para rimar com “plenário”, citando a obra e o aí advogado de defesa, Dr. Rigoberto Mendes.

Aquilino vê-se, assim, nas vis malhas dessa justiça enredado, aos 73 anos de idade, constituído arguido por vários crimes, tais como:

Instigar à prática de crimes contra a segurança do Estado, punível com prisão de 2 a 8 anos;

Atentar contra o prestígio do país no estrangeiro, prisão de 2 a 8 anos;

Ofender a honra de Salazar, prisão de 2 anos;

Ofender a honra da magistratura, 1 ano;

Ofender a PIDE, 4 meses;

Praticar diversos delitos de imprensa…

Num cômputo de penas que poderia ir de 3 anos e meio a quase 12 anos de prisão, conforme o requeriam os serventuários magistrados em funções.

Pagos pela solidariedade fraterna de alguns, os 60 mil escudos de caução, à época o preço de um automóvel de gama alta, livraram-na da cadeia, onde já penificara em 1907, na esquadra do Caminho Novo, em Lisboa e em 1928, no Presídio do Fontelo, em Viseu. Cumpre referir que destas prisões e por seus meios, sempre lesto se soube evadir… e que sempre pela Liberdade a elas fora condenado.

As vozes democráticas que se ergueram, no país e no estrangeiro, e foram muitas, atemorizaram e fizeram recuar o ditador, e Aquilino saiu por um fino fio desta mal urdida teia, tendo-se o seu romance perpetuado, logo na 1ª edição de 9 mil exemplares, que em pouca horas esgotou, deixando apenas 32 nos escaparates das livrarias, para as rapaces garras dos Censores e da ofendida e celerada polícia política.

Adolfo Casais Monteiro, escreve no prefácio da edição brasileira à obra:

“O Estado Novo não poderia perdoar ao maior escritor português do nosso tempo ter posto a sua prosa admirável ao serviço da verdade, fazendo um retrato sem retoques da justiça salazarista, em toda a sua descarada e repugnante falsificação de valores. Ali estão os amigos do povo, os regeneradores das tradições, ali estão, ao natural, os que vieram salvar Portugal da “desordem”: ali está a verdadeira face do regime e da cega violência, da estúpida violência, querendo esmagar os orgulhos serranos a bem de um plano que, sendo bom nos seus presumíveis frutos – o reflorestamento da serra – se torna péssimo por ser levado a cabo como se o povo não existisse, na mais total indiferença pela sorte que o espera quando ficar sem os parcos contributos à sua miséria que a serra lhe dá.”

Hoje e aqui, temos o Homem, com as merecidas maiúsculas de sempre, as divisas de uma vida inteira trilhada com ampla coesão e total coerência.

Temos os lobos “mais humanos que os juízes” e, até hoje nos arrepiamos ao pensar, como escrito no título do texto integral da acusação e defesa no processo Aquilino Ribeiro, que quando os lobos julgam a justiça uiva.

Estes esculpidos e belos lobos, assim docilizados, que aqui acolitam o mestre, pelo genial e viril escopro do artista Daniel Gamelas, são agora a sua guarda de honra, o homem e os animais sendo bem o símbolo desta terra e das suas gentes, possível cenário na ficcionada serra dos Milhafres, que tão simbolicamente vai buscar engenhoso topónimo à ave predadora que se alimenta de pequenos mamíferos, tão oposto à águia do antropónimo do seu autor.

De hoje e para o futuro, doravante, aqui ficam como testemunho de um ser maior, lembrança da sua obra, orgulho das suas gentes, desafio aos vindouros, exemplo e modelo da liberdade, convite à leitura de seus livros e hino à fraternidade… prescientes de que Teotónio Louvadeus, o protagonista de “Quando os lobos uivam”, poderemos ser todos nós.”

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