Nos 50 anos da democracia, 50 personalidades subscrevem um manifesto que critica os aspetos mais nefastos do sistema de justiça em Portugal e apela à iniciativa política para uma verdadeira reforma. O manifesto dá prioridade à separação dos dois poderes e apela a uma “atitude pró-ativa” do poder político “na definição e execução da política de justiça”. Sem prejuízo da sua autonomia, exige-se a recondução do Ministério Público ao funcionamento hierárquico e o fim do exercício por parte dos seus magistrados de “um poder sem controlo” interno ou externo. Os 50 subscritores pedem “escrutínio externo” e “avaliação democrática independente” do sistema judicial.
Esta reforma da justiça deve ser assumida como “inequívoca prioridade na defesa do Estado de Direito democrático”, o qual, segundo os subscritores, está verdadeiramente em causa por “ser o setor do poder público que mais problemas tem vindo a evidenciar”. As “falhas” da justiça que são enumeradas ao longo dos dez pontos do Manifesto dos 50 “em nada são compatíveis com o Estado de Direito Democrático”, nem com “a eficiente gestão dos avultados recursos públicos a ela afetos (que comparam bem com outros países europeus)”, nem com “o respeito pelos direitos e interesses dos destinatários do sistema de justiça”.
O Manifesto dos 50 denuncia que “a montagem do já habitual espetáculo mediático nas intervenções do Ministério Público contra agentes políticos”, a par da colocação cirúrgica de notícias sobre as investigações em curso, têm “formatado a opinião pública para a ideia de que todos os titulares de cargos públicos são iguais e que todos são corruptos até prova em contrário”. Segundo os 50 subscritores, “esta forma perversa de atuar, com contornos mais políticos do que judiciários”, tem produzido um óbvio desgaste no regime e aberto “as portas ao populismo” e à demagogia. A perversidade é tanto maior quanto “os resultados práticos do combate à corrupção em Portugal se reduzem normalmente a um preocupante insucesso e a uma manifesta incapacidade de combater tão grave fenómeno”
Cultura de perfil corporativo no Ministério Público
A “prolongada passividade” do país político perante esta “iníqua realidade” levou ao “penoso limite de ver a ação do Ministério Público produzir a queda de duas maiorias parlamentares resultantes de eleições recentes, apesar de, em ambos os casos, logo na sua primeira intervenção, os tribunais não terem dado provimento e terem mesmo contrariado a narrativa do acusador”. Os 50 subscritores consideram “inconcebível” que, mesmo tendo decorrido “longos cinco meses” entre o primeiro-ministro se ter demitido na sequência do comunicado da Procuradoria-Geral da República e a sua cessação de funções, o Ministério Público nem sequer se tenha dignado informá-lo sobre o objeto do inquérito, nem o tenha convocado para qualquer diligência processual.
“Além de consubstanciarem uma indevida interferência no poder político, estes episódios também não são conformes às exigências do Estado de Direito democrático”, afirmam os subscritores. Apesar da gravidade do sucedido, registam que não houve qualquer consequência interna na condução das investigações e dos atos processuais “por força de um funcionamento e de uma cultura de perfil corporativo que manifestamente predomina no Ministério Público”.
Desta cultura corporativa, bem como “da assumida desresponsabilização da procuradora-Geral da República pelas investigações”, decorre que a política criminal, em vez de ser definida pelo poder político como está previsto da Constituição, é, na prática, executada por magistrados do Ministério Público “sem qualquer mandato constitucional”, os quais exercem “um poder sem controlo” externo ou interno.
Apesar desta “perigosa realidade”, o Manifesto dos 50 constata que, “nem qualquer órgão de soberania, nem qualquer partido político relevante, têm mostrado a necessária vontade e coragem políticas para encetar uma verdadeira reforma da Justiça”. O manifesto apela, por um isso, a “um sobressalto cívico” da sociedade no ano em que a democracia portuguesa acaba de celebrar os seus 50 anos, impelindo “os responsáveis políticos a assumirem as suas responsabilidades” e a levarem a cabo uma reforma que, “respeitando integralmente a independência dos tribunais, a autonomia do Ministério Público e as garantias de defesa judicial”, resolva os “estrangulamentos e as disfunções” que minam a sua eficácia e a sua legitimação pública.
Garantir “efetiva separação entre o poder político e a justiça”
O Manifesto dos 50 apela a que reforma pedida “não seja desenhada à medida dos interesses corporativos dos diversos operadores do sistema”, mas que, pelo contrário, tenha o cidadão e a defesa do Estado de Direito Democrático como eixos centrais das suas preocupações. Por isso, a primeira prioridade deve ser “garantir uma efetiva separação entre o poder político e a justiça”, seguindo-se a “transparência” no funcionamento das instituições da justiça e a capacidade dos órgãos democraticamente eleitos “definirem a política criminal” e “controlarem a sua execução”.
Nas outras prioridades avançadas pelo manifesto, duas dirigem-se diretamente às magistraturas: “Reconduzir o Ministério Público ao modelo constitucional do seu funcionamento hierárquico, tendo como vértice o PGR, responsabilizando cada nível da hierarquia pela legalidade e qualidade do trabalho profissional das equipas”; e “reforçar os meios de avaliação efetiva e independente no seio do sistema judiciário e implementar mecanismos de escrutínio democrático externo”, designadamente pela Assembleia da República.
O manifesto termina afirmando que “a melhor e mais nobre comemoração que podemos assumir nos 50 anos da democracia portuguesa é reconhecer de forma digna e leal o que a está a fragilizar e, honrando o nome dos que por ela lutaram, ter a coragem e a vontade de mudar”.