Lamurienta raça

E é este povo decaído, esta mansa colmeia, zumbidora e industriosa que colhe o fel, já não corcel alado, antes jumento ou asno labutando para gáudio de alguns cidadãos desta polis...

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  • 10:07 | Quarta-feira, 15 de Dezembro de 2021
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A lamúria é uma consolação muito portuguesa.

Quer enquanto choradeira bem carpida, quer como queixume lamentado, quer como súplica lastimada, a lamúria é quase tão nossa quanto a saudade nossa é.

Outrora, em Roma, as Lemurias eram festas em honra das almas dos mortos. Hoje são acre consolo do desalentado ânimo dos vivos.


E até há quem se especialize na arte e a confeccione e sirva com tal profusão de lágrimas – aquelas gotas de humor aqueo que saem a pares dos olhos de quem chora, tornadas pranto pela bátega efusiva – que são um choro desfeito.

Vieira fala-nos desse mor pranto que acudiu aos peitos lusos quando, na Índia souberam do passamento de D. Manuel: “Começaram a chorar em grito, e se levantou o maior e mais lastimoso pranto que jamais se vira.” Hoje, o grito é mudo e não se ergue, nem soergue, antes cai nas profundas de todos nós.

Os gauleses, finórios, naquele espírito saltitante corporizado no m’sieur Macrontérix, chamaram-lhe “Jeremiadas” em honra de S. Jeremias, cujas lamentações ficaram, perpétuas, na hagiografia dos lastimantes de todos os séculos, idos e a vir.

Seja qual for o ápodo, o som, esse ecoa hoje mais que ontem na voz de todo o lusitano. Da plebe, claro está, que voltando a Vieira, “são os mais pequenos e os que menos avultam na republica.”

E sem procurar mais, neste coro, um “Lamento”, de Torga, dá o lamiré:

Pátria sem rumo, minha voz parada

Diante do Futuro!

Em que rosa-dos-ventos há um caminho

Português?

Um brumoso caminho

De inédita aventura,

Que o poeta, adivinho,

Veja com nitidez

Da gávea da loucura?

Ah, Camões, que não sou, afortunado!

Também desiludido,

Mas ainda lembrado da epopeia…

Ah, meu povo traído,

Mansa colmeia

A que ninguém colhe o mel!…

Ah, meu pobre corcel

Impaciente,

Alado

E condenado

A choutar nesta praia do Ocidente…

E é este povo decaído, esta mansa colmeia, zumbidora e industriosa que colhe o fel, já não corcel alado, antes jumento ou asno labutando para gáudio de alguns cidadãos desta polis, que Ulisses, o do mito, que o Pessoa refez n’ “o tudo que é nada”, cantando pariu Ulissiponis, Lissiponis e até Lisboa, capital que vem de cabeça, cujos membros, aos quatro cantos cardinais deste rectângulo, estrénuos, adejam insólitos a-deus-es acenados ao som das jeremiadas, como a raiva de um cilício ecoando nas margens do rio que passa.

E é este povo traído, Sísifo sempre, o corcel feito Ícaro despenhado, num chouto condenado, que vai convertendo iras em furores, tudo remoendo, por ora, em “ Tormento puro, doce e magoado.”

 

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