En guise de apresentação da 4.ª Revista Aquilino

Sem as referências do passado e sem as responsabilidades do futuro, o momento não é presença, é ausência. José Luís Nunes Martins, Amor, silêncios e tempestades No dia 20 de setembro de 2009 estive pela primeira vez em Sernancelhe para falar sobre a obra de Aquilino Ribeiro, num colóquio realizado em parceria entre a Câmara […]

  • 19:59 | Segunda-feira, 17 de Dezembro de 2018
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Sem as referências do passado e sem as responsabilidades do futuro, o momento não é presença, é ausência.

José Luís Nunes Martins, Amor, silêncios e tempestades

No dia 20 de setembro de 2009 estive pela primeira vez em Sernancelhe para falar sobre a obra de Aquilino Ribeiro, num colóquio realizado em parceria entre a Câmara Municipal e a Universidade de Aveiro, e que tinha por título «Voltar a Ler Aquilino Ribeiro». Conhecera, então, o Dr. Paulo Neto, o organizador do evento, o Sr. Presidente da Câmara, José Mário Cardoso, o Sr. Vice-Presidente, Carlos Silva, toda a comitiva da Câmara e o Engº Aquilino Ribeiro Machado.\r\nE foram muitas as coisas que aprendi a admirar em todas estas pessoas: a riqueza do conhecimento e a dedicação incondicionais do Dr. Paulo Neto ao escritor beirão; o amor à terra, à sua gente, e o respeito pelo património material e imaterial do Sr. Presidente José Mário Cardoso; o fulgor da entrega do Sr. Vice-Presidente, Carlos Silva, que já manifestava um grande apreço pela terra que o vira nascer e pelo escritor Aquilino Ribeiro; a entrega total da comitiva da câmara; a dignidade do Eng.º Aquilino Ribeiro Machado e os valores que herdara do pai.


E é muito genuinamente que digo que todas estas pessoas foram e são relevantes para mim, pois tiveram e têm ainda uma influência real na minha existência. Todas elas exprimem a essência do homem e os seus valores, e fazem-me acreditar na dileção e no rigor intelectual, político e profissional.

Viera-o comprovar, ainda, a minha estada em Vila Nova de Paiva, a Barrelas de Aquilino, quando, a convite da Bertrand Editora, fui apresentar a reedição do Malhadinhas.

Ora, o facto é que não me deveria ter surpreendido com a gente beirã, pois já tinha travado amizade com ela nas páginas dos romances de Aquilino, «retocada ou em carne viva, descrita parcialmente ou na íntegra»[i] pelo próprio escritor.

Tal como ele escrevera n’Um Escritor Confessa-se: «Que regalo não é mudar de pele como as cobras, estes inofensivos répteis dos campos que concitam a aversão atávica do homem, e despir o que se traz da cidade, traje, engravatamento, leituras, presunções de civilizado»[ii]. E se, hoje, estamos longe da lavoura e da sachola, «da negra e rude vida»[iii], e do isolamento, a persistência, a valentia, a resiliência e o orgulho mantêm-se incólumes nesta sociedade.

Se nada mais houvesse que nos unisse, e eu vos asseguro que não é esse o caso, pois também eu sou serrana, bastaria o interesse pelo Mestre e pela sua obra para que nos aproximássemos. Entendo muito bem o aprisionamento afetivo e intelectual do Dr. Paulo Neto ao Mestre, pois creio ser impossível não levar a obra deste escritor consigo pela vida toda. Quanto mais a estudamos, mais nos interessamos pelo homem e pela sua escrita, em todas as suas dimensões.

Estou convicta de que todo o trabalho desenvolvido pelo Dr. Paulo Neto se encontra baseado numa profunda admiração pelo homem e pelo escritor, mas também por esta terra e pela sua gente. A sua devoção ao estudo de Aquilino, sinergeticamente articulada com o empreendedorismo autárquico, no domínio da promoção da cultura local, ajudam a fomentar a notoriedade e a projetar este e os outros municípios. Estas duas forças, individual e coletiva, presentificam o passado e dão eco à voz de Aquilino, que, como sabemos, pela escrita, transcende os limites do tempo.

Obrigado a exilar-se, o ainda jovem Aquilino, segundo Jorge Reis, no Antelóquio das Páginas de exílio, «Ao chegar a Paris, a 3 de junho de 1908, [é] o ‘moço bisonho, quase donzel, nada estreado no entrecasco das coisas do mundo, ainda com a envide de rústico’ e que acabava de se vispar dos galfarros da bufaria de João Franco, [e] não trazia na valise de ‘janota’ senão uma muda de roupa, a navalha de barba, o pincel e uma pitada de sabão em pó. No bolso do colete, mal cantava a meia-dúzia de patacos que restavam de 200 mil réis»[iv], mas não tinha frio nos olhos e seria capaz de tudo suportar para pisar terra firme e formar-se no país que ele considerava «todo Direitos do Homem e Sete Dores de Nossa Senhora. Por isso, com o entusiasmo dos seus 23 anos, sentia-se com alma bastante (…) para vir a ser aquilo que há mais decidira: escritor!»[v]. Eis a fibra de que é feito o homem Aquilino Ribeiro. Arrojado, lançara-se para o desconhecido, mas com uma convicção: tornar-se escritor. Como poderiam Sernancelhe, Moimenta da Beira e Vila Nova de Paiva ignorar este autor e a sua escrita, se foi ele quem levou bem longe estas terras e a sua gente?

Congratulo-me pelo facto de os três municípios se terem juntado para reeditar algumas obras do Mestre e de se terem dedicado afincadamente à promoção e divulgação deste escritor. Neste sentido, relembro que estamos à porta do centenário de Terras do Demo, o grande romance das serranias beirãs, onde nasceu a sua escrita, e que não podemos prescindir de ler se quisermos entender a relação das suas gentes com a natureza.

Tal como refere o Sr. Presidente da Câmara de Sernancelhe, nesta mesma revista, Aquilino tornou-se um símbolo local, nacional e internacional, uma vez que nunca se perde a oportunidade de falar dele além-fronteiras.

Neste momento, na minha desorientação, surgem-me estas duas frases de Um Escritor Confessa-se: «- Mas que andas tu aqui a fazer? E para onde hás-de ir?»[vi].

Cá estou eu, nove anos mais tarde, numa relação sustentada pelo respeito e a estima, para participar na apresentação da 4ª Revista Literária da Câmara de Sernancelhe Aquilino, que tão primorosamente tem sido dirigida pelo douto investigador Paulo Neto.

O projeto, que nasceu há 8 anos, visava a promoção e divulgação da vida e da obra de Aquilino Ribeiro, um escritor conceituado e reconhecido, mas que, na época, se mantinha, ainda, no desconhecimento ou esquecimento do grande público, estando o seu estudo predominantemente centrado nas academias.

Esta revista não pretende ser elitista, só reservada a intelectuais ou a estudiosos de Aquilino, mas visa antes abordar de forma descomplexada e democrática a obra aquiliniana, num jogo de passeur de leituras. O denominador comum: a paixão por Aquilino Ribeiro. Diz-nos, aliás, o diretor da revista, Paulo Neto, a este respeito, no seu preâmbulo, que a intenção fora principalmente de «partilhar com aquilinianos de paixão e estudiosos de gosto, [a] tão dispersa quão dispare e original produção do escritor»[vii]. A ideia fora acarinhada e incentivada pelo Engº Aquilino Ribeiro Machado, que não teve a oportunidade de ver o primeiro número.

Este número, dedicado aos prefácios escritos por Aquilino Ribeiro, oferece, efetivamente, e retomando a expressão de Paulo Neto, umas “preciosidades”, que muito mereceriam um estudo comparatista rigoroso.

O prefácio serve para, num ato de comprometimento, fornecer indicações sobre o texto que ainda está por ler e guiar a leitura do público. Aquilino prefaciador cumpriu esta função, mas também deixou a sua marca em obras alheias, no sentido em que, na sua vontade de apoiar jovens escritores, de juntar a sua notoriedade à de outros escritores conhecidos e reconhecidos ou de revelar o seu interesse pelas mais diversas temáticas, também incutiu, no leitor, a sua originalidade e singularidade poéticas.

Apesar de desenquadrados do seu contexto inicial, a compilação destes prefácios pode agora, e cito Eduardo Boavida, «deixar de passar em claro, como tantas vezes acontece com os preâmbulos. Dispostos aqui numa outra geometria, num enquadramento diverso daquele em que foram dados à estampa, permitirão certamente novas leituras»[viii].

Ao longo de 50 anos de carreira, Aquilino prefaciou auspiciosamente inúmeras obras literárias e, no seu discurso prefacial, dirige-se claramente a alguém que o vai ler antes de ler o texto prefaciado.

Tratando-se de um escritor conhecido e reconhecido, enaltece-lhe o talento, comparando-o a outros criadores do seu ou de outros tempos, do seu ou de outros países. Releva a sua singularidade estética e mergulha numa análise meticulosa do texto principal.

Ocupando-se de prefaciar textos de jovens escritores, apresenta-os, mas evita lançar-se numa análise que poderia encobrir ou disfarçar «falhas de técnica, traços errados na pintura dos caracteres e uma que outra quebra de bom gosto»[ix]. Por não ser o «Cardial Diabo», prefere deter-se pelo elogio, salientando o que a obra tem de bom e inovador.

Mas não permanece única e exclusivamente na sua coutada, prefaciando obras diretamente ligadas à sua arte. Com efeito, e desculpem-me a locução proverbial, «mete a foice em seara alheia», redige textos sobre os mais diversos temas, tais como a religião, o planeamento rodoviário, a aviação, a tourada, etc. Discorre criticamente sobre variadíssimas temáticas, tecendo comparações e emitindo opiniões.

Ao homem de letras vem juntar-se o homem eclético, de conhecimentos e interesses múltiplos, mas cujo primor se encontra na abordagem humana e respeitosa dos textos que são alvo da sua apreciação.

Ora se, como já tivemos a ocasião de esclarecer, teoricamente, uma das funções tradicionais do prefácio consiste em organizar, sob a forma de um esclarecimento, às vezes de uma advertência, a relação do livro (o que se vai ler) com o seu leitor (aquele que vai lê-lo), esclarecendo para este último as intenções do autor, consequentemente, o sentido do que ele (realmente) quis dizer, não devemos igualmente esquecer que o prefácio deve assegurar o destino do autor do livro e ajudá-lo no caminho que ele tem de seguir.\r\n\r\nAssim, saltar um preliminar aquiliniano para ir imediatamente cravar os olhos no texto principal, seria perder a tonalidade, a prática estética, o dinamismo discursivo e o barroquismo linguístico de um grande escritor. Não perdemos, pois, a possibilidade de os lermos isoladamente para, de seguida, os voltarmos a colocar no livro e os voltarmos a ler no seu enquadramento natural.

Paulo Neto, enquanto diretor, e Carlos Silva, enquanto Presidente da Câmara e promotor da revista, devem, pois, ser uma vez mais congratulados por este projeto generosamente radical, onde Aquilino SÓ aparece «à porta dum livro», MAS deixa a porta escancarada para quem quiser entrar.

………………

[i] RIBEIRO, Aquilino (1972). Um Escritor Confessa-se. Lisboa: Livraria Bertrand, p. 151.

[ii] Ibid., p. 186.

[iii] Ibid., p. 137.

[iv] RIBEIRO, Aquilino (1988). Páginas do Exílio I (1908-1914). Lisboa: Veja, p. 11.\r\n[v] Ibid., p. 12.

[vi] RIBEIRO, Aquilino (1972). Um Escritor Confessa-se. Lisboa: Livraria Bertrand, p. 103.

n[vii] NETO, Paulo (2018). «À memória do Senhor Engº Aquilino Ribeiro Machado». In NETO, Paulo (Dir.), Aquilino. Revista Literária da Câmara Municipal de Sernancelhe, nº 4. Sernancelhe: Câmara Municipal de Sernancelhe (pp. 6 e 7), p. 6.\r\n[viii] BOAVIDA, Eduardo (2018). «Aquilino para Aquilino». In NETO, Paulo (Dir.), Aquilino. Revista Literária da Câmara Municipal de Sernancelhe, nº 4. Sernancelhe: Câmara Municipal de Sernancelhe (pp. 12 e 13), p. 12.\r\n[ix] RIBEIRO, Aquilino (1925). Prólogo de A Burguesinha, de A. M. Lopes do Rego. In NETO, Paulo (Dir.), Aquilino. Revista Literária da Câmara Municipal de Sernancelhe, nº 4. Sernancelhe: Câmara Municipal de Sernancelhe, p. 52.\r\nMARIA EUGÉNIA TAVARES PEREIRA\r\nDLC – Universidade de Aveiro’, ‘Lançamento da 4ª Revista Aquilino’

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