Assinalando o 8 de Abril – Dia Internacional dos Ciganos, dirigimos esta carta aberta a todos os nossos concidadãos, incluindo aqueles que ainda têm preconceitos relativamente à etnia cigana, com o objetivo de dissipar ideias preconcebidas, desmontar estereótipos e derrubar generalizações injustas e anacrónicas, alimentadas por políticos demagogos que normalizam o discurso de ódio e a estigmatização de minorias.
O contexto da pandemia COVID-19 veio agravar a situação de vulnerabilidade das minorias. Num memorando publicado em março de 2021, a comissária para os Direitos Humanos do Conselho da Europa alerta para “o aumento do número de crimes motivados pelo ódio racial, assim como do discurso do ódio, visando sobretudo os ciganos, os afrodescendentes e pessoas vistas como estrangeiras em Portugal”.
Em toda a Europa, a pandemia serviu de pretexto para policiar e segregar ainda mais a comunidade cigana. As propostas de confinamento especial para a comunidade cigana em Portugal são hoje uma realidade em países do leste da Europa, como a Hungria e a Bulgária, países onde cresce o autoritarismo. Não podemos deixar de salientar o precedente de conotar a comunidade cigana com “ameaças à saúde pública”. Sob o pretexto de proteger a saúde pública (e limpar a “raça” alemã) o regime nazi assassinou meio milhão de ciganos, e promoveu a esterilização forçada de mulheres ciganas. A ciganofobia não começou nem acabou com o horror do Holocausto, mas devemos lembrar a família ideológica de quem prega a segregação de minorias étnicas. Em Portugal, nenhum partido parlamentar se assume abertamente como fascista, porque isso, sendo proibido pela Constituição da República, obrigaria o Tribunal Constitucional a ilegalizá-lo. Mas a extrema-direita não disfarça o seu racismo.
A discriminação contra as minorias não é exclusiva de regimes autocráticos; mesmo em democracia existe discriminação estrutural contra os ciganos, os negros, os imigrantes, as mulheres e pessoas LGBTI+. Sabemos que um dos primeiros sintomas da degradação democrática é precisamente a mobilização demagógica contra as minorias. Por isso, cada um de nós tem o dever de combater a discriminação e assegurar que as vozes das minorias são ouvidas e respeitadas.
Uma acusação comum feita às pessoas ciganas é a de não trabalharem e viverem à custa do Rendimento Social de Inserção (RSI). Ora, a verdade é que, segundo dados e estudos da própria Segurança Social, os ciganos que recebem RSI representam apenas 3,8% do total de beneficiários. Apesar de a maioria da comunidade cigana se inserir nos mais de 2 milhões de pobres que há em Portugal, a maior parte trabalha nas feiras, no comércio ou venda ambulante e no artesanato.
Com a democracia, as novas gerações de ciganos e ciganas portuguesas têm conseguido, à custa de muito esforço, abraçar profissões mais qualificadas, depois de quase seis séculos de banimentos, perseguições e violências bárbaras contra homens, mulheres e crianças desta etnia. Apesar dos progressos alcançados, persistem os estigmas, exclusões e discriminações, sobretudo no acesso à habitação e ao emprego. Os elementos das comunidades ciganas encontram-se guetizados pelas autarquias em bairros sociais periféricos, com dificuldades em obter um contrato de trabalho, conforme estudos e relatórios oficiais do governo, da UE e de várias organizações de defesa dos Direitos Humanos, como a Amnistia Internacional.
Pontualmente vemos ciganos e ciganas que conseguiram guindar-se a posições de destaque nas mais variadas profissões, nomeadamente, professores, cientistas, advogados, engenheiros, futebolistas, atrizes, cineastas, médicas, enfermeiras e até uma vereadora e deputada na Assembleia da República e um Secretário de Estado do actual governo, Carlos Miguel, que já foi presidente da Câmara Municipal de Torres Vedras. No entanto, a mobilidade social só é possível generalizar-se com um ensino verdadeiramente inclusivo, que valorize a diversidade cultural de todas as comunidades em Portugal.
O número de ciganos na escola obrigatória duplicou nas últimas duas décadas, mas ainda há um défice enorme no ensino secundário e sobretudo no superior. Para ajudar a superar esta dificuldade, a Associação Letras Nómadas, liderada por uma mulher cigana, Olga Mariano, em parceria com a Rede Portuguesa de Jovens para a Igualdade de Oportunidades Entre Homens e Mulheres, criou o projecto “Opré Chavalé” (“Erguei-vos, jovens”, em romani), a que se seguiu o projecto OPRE, cofinanciado por fundos comunitários, que já concedeu bolsas de estudo para a frequência do ensino superior de quase meia centena de rapazes e raparigas ciganas (80% são oriundos de bairros sociais e as raparigas já são a maioria e as que têm maior sucesso escolar).
As jovens e os jovens ciganos acreditam no lema do “Opré Chavalé”: “A educação é a arma mais poderosa que podemos utilizar para mudar o mundo” (Nelson Mandela). Não é por acaso que um dos peritos de acompanhamento deste projecto é um jovem ativista cigano reconhecido pelo seu exemplo de “educação sem assimilação”, Piménio Teles (“Gitelles”), Técnico Superior de Investigação no Instituto de Biofísica e Engenharia Biomédica da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.
A cultura das várias comunidades romá (Kalderash, Vlax, Lovari, Ruska, Sinti, Manouche ou os ibéricos Calon ou Calé) integrou e enriqueceu a cultura dos países onde se inseriram. No campo da música a cultura cigana foi absorvida pela identidade nacional de Espanha, com o Flamenco, e marcou a música popular portuguesa. É marca cultural de todos os países balcânicos, com as bandas internacionalmente chamadas “balkan brass” ou “gypsy brass”. Marcou a cultura francesa com o “jazz manouche”, que ainda hoje anima as noites de Paris. A música cigana influenciou igualmente a música clássica europeia, inspirando obras de músicos eruditos como Beethoven, Brahms (que alguns biógrafos dizem ser de origem cigana) Haydn, Liszt, Schubert, Dvorjak, Berlioz, Ravel, Debussy, Bizet, Sarasate, Albéniz, Granados, Falla, Turina e Francisco (Paco) Suárez Saavedra, ele próprio cigano. Conta-se que o filho mais velho de Bach abandonou a cátedra de professor de órgão em Notre-Dame de Halle, para se juntar a um grupo de ciganos com quem tocou violino.
Existem centenas de ciganos e ciganas famosas em todo o mundo, das artes às ciências, e até no Parlamento Europeu já há duas deputadas de origem cigana e um eurodeputado desta etnia.
Outras características (não exclusivas, é claro) da cultura cigana são o espírito comunitário, o respeito pelos idosos e o amor pelas crianças.
A cultura cigana faz parte da cultura portuguesa, mas os ciganos só foram reconhecidos como cidadãos nacionais a partir da Constituição de 1822 e só com o 25 de Abril é que adquiriram a plena cidadania. A única coisa que vos pedimos é que não dificultem, com preconceitos anacrónicos, a total inserção (sem aculturação) dos ciganos e ciganas na multicultural sociedade portuguesa.
ASSOCIAÇÕES SUBSCRITORAS:
Associação Social, Recreativa e Cultural Cigana de Coimbra
Círculo de Cultura Cigana (CCC) do Núcleo de Viseu da Associação Olho Vivo
Grupo Ativo Comunitário de Viseu
Costume Colossal – Associação para a Integração das Comunidades Ciganas (Setúbal) Letras Nómadas – Associação de Investigação e Dinamização das Comunidades Ciganas Sílaba Dinâmica – Associação Intercultural (Elvas)
SUBSCRITORES INDIVIDUAIS:
António Fernandes Pinto (Técnico Auxiliar de Saúde – membro do CCC)
Bruno Gonçalves (Licenciado em Animação Sócio-Educativa, formador, co-mentor do “Opré-Chavalé”, membro da Assembleia de Freguesia de Buarcos-S.Julião, autor de livro infantil “A História do Ciganito Chico”).
Carlos Vieira (vice-presidente da Olho Vivo – Associação de Defesa de Direitos Humanos e activista do CCC)
Catarina Vieira e Castro (Professora, deputada na AM de Viseu e activista do CCC)
Guiomar Sousa (mediadora sócio-cultural e activista pelos Direitos das Mulheres Ciganas) Luís Romão (Dirigente associativo da comunidade cigana de Elvas)
Maria Gil (actriz e activista pelos Direitos da Mulher Cigana)
Maria João Pais (Activista da comunidade cigana de Coimbra)
Mário Santos “Marinho” (Estudante do Ensino Superior e Monitor do Projecto Caminhos E7G) Osvaldo Grilo (dirigente associativo e activista da comunidade cigana de Coimbra).
Osvaldo Russo (estudante do Ensino Superior e coordenador do Grupo Ativo Comunitário de Viseu)
Ringo Pinto Lourenço (dirigente da Associação de Feirantes das Beiras)
Rui Salabarda Garrido (Mediador intercultural em Elvas e activista pelos direitos da etnia cigana) Vânia Cardoso Lourenço (estudante de Direito e activista do Círculo de Cultura Cigana de Viseu)