“A Herança”, de Rebelo Marinho

Uma história de limites e linhas vermelhas, de interditos e bloqueios. A tirania do desejo, a relatividade da memória, os fiscais das almas, os solenes véus da mentira, os muros e as fortalezas, as fronteiras, as procissões do regime, o convívio permanente com o perigo, o respiro da adrenalina da transgressão, vidas suspensas no fio da navalha. Homens e mulheres, cruzados de uma só fé, subterrânea, dissolvente, pesada.

Tópico(s) Artigo

  • 11:14 | Terça-feira, 25 de Março de 2025
  • Ler em 5 minutos

No próximo dia 29 de Março, às 15H00, na Biblioteca Municipal de Sátão, Elisabete Bárbara apresentará o sexto livro de Rebelo Marinho, “A Herança”.

RD: Um brevíssimo CV do autor…

RM: Joaquim Manuel Rebelo Marinho; Data de nascimento: 27/09/1955; Natural de Luanda, é casado, tem um filho e uma neta. Reside em Sátão.


Licenciado em Ensino, variante de Estudos – Ciências Económico-Sociais. Profissão: Professor aposentado do Ensino Secundário. Director da Universidade Sénior de Sátão. Autor e colunista. É hipocondríaco, claustrofóbico, misófono e supersticioso.

RD: Desde 2018 publicaste as seguintes obras: “O Carteiro”, “O Bastardo”, “Gentes da Nossa Terra”, “O Guião das Almas” e “Elias, o macaquinho de rabo pelado”. Ou seja, três romances, um tributo ou homenagem e uma ingressão na literatura infanto-juvenil. A que se deve esta variedade de género?

RM: O meu género literário é o romance. Aí, tenho estrada para criar e construir enredos. Também me sinto confortável na crónica, carregando nas tintas, por vezes, impiedoso e truculento. Gosto. O “Gentes da minha Terra” e o “Elias” são dois tributos. Um reconhecimento à terra onde cresci e me fiz homem, e a devoção ao meu amor maior, a  “minha” Inês.

RD: Esta vocação para a escrita literária revelou-se tardiamente ou é inata? Porquê só agora?

RM: Eu sempre tive muito receio do juízo sobre o escrevo. Lido mal com o erro e o fracasso apavora-me. Mas sempre gostei de escrever. O gosto de escrever nasceu comigo. A vocação é inata. Não se aprende a escrever, penso eu. Nasce com cada um. Há quem se atreva, mas não consegue, por muito que tente.  Sou pouco sociável. Essa característica pessoal conflituava com a formalidade do inevitável momento da apresentação dos livros. Estou sempre desconfortável.  A soma de um conjunto de pequenos textos sobre o carteiro foi o interruptor que acendeu a luz. Talvez o tempo livre, as memórias, a experiência da vida e um melhor conhecimento da espécie humana tenham facilitado este encontro tardio com a escrita literária. Tenho mais que contar. Já não tenho outras coisas para fazer.

 

RD: “A Herança”, o último romance, será apresentado no dia 29 de Março, na Biblioteca Municipal de Sátão. Para “aguçar o apetite”, qual a sua sinopse?

RM: Uma viagem rocambolesca e acidentada, que nos transporta para os tempos do contrabando, transmitido por diferentes gerações de dua famílias, vizinhas na rua, rivais na ambição, para a  sordidez da Inquisição, o ocaso da Monarquia e as primícias da República, o sangrento Regicídio e o vitorioso 5 de Outubro, a Carbonária e o Estado, a Maçonaria e a Igreja, a PIDE e as eleições-fantasma, a tortura e o Outono marcelista, o Exame Prévio e as falsas liberdades, os vícios privados e o escândalo do “Ballet Rose”, as virtudes públicas e a pedofilia, a riqueza excêntrica do “ouro negro”, os “passadores” e a emigração “a salto”, as manhãs de Abril e a esperança num abraço. O incesto. Uma história de limites e linhas vermelhas, de interditos e bloqueios. A tirania do desejo, a relatividade da memória, os fiscais das almas, os solenes véus da mentira, os muros e as fortalezas, as fronteiras, as procissões do regime, o convívio permanente com o perigo, o respiro da adrenalina da transgressão, vidas suspensas no fio da navalha. Homens e mulheres, cruzados de uma só fé, subterrânea, dissolvente, pesada.

 

RD: O Sátão tem, se o podemos afirmar, uma quase omnipresença neste conjunto da obra. Existe algum concreto motivo?

RM: Sim, quase tudo se passa aqui, e, quando não é precisamente aqui, é no interior. Com nomes fingidos. Gosto muito dos lugares que são confiáveis. Nunca seria um emigrante, talvez só por necessidade. Sou muito de rotinas. Gosto muito de dormir na minha cama. Sou muito de confortos e o Sátão sossega-me. A terra nunca me impediu de ser quem sou. No fundo – talvez uma contradição – é uma forma de homenagear a terra que nem sempre me tratou bem. Mas já fiz esse luto.

RD: Aquilino Ribeiro, que afirmas ser uma das tuas referências literárias, juntamente com Eça e Camilo, foi também autor de três obras de literatura infanto-juvenil: “Romance da Raposa”, “Arca de Noé – III Classe” e “O Livro de Marianinha”, os primeiros consagrados a seus filhos Aníbal Aquilino Tiedmann Ribeiro e Aquilino Ribeiro Machado, sendo o terceiro dedicado a sua neta Mariana. Colheste alguma simbólica inspiração dos gestos e das homenagens?

RM: Ser avô é mágico, e Aquilino retrata essa magia de uma forma soberba. Como um homem rijo e duro pode ser afectuoso e carinhoso quanto toca em quem mais lhe toca. A transformação nos gestos e nas palavras é um milagre que só o amor sem “ses” nem “mas” pode explicar. Aquilino é sempre uma inspiração.

 

RD: Na “forja” há mais algum título para um futuro próximo?

RM: Sim, “A Valsa dos Amantes”, para o Natal, seguramente. O pequeno delito, a violação dos códigos, o pisar dos limites, as linhas vermelhas sempre a perseguirem-me. Fascina-me o fantástico da transgressão. Gosto de andar em contramão, de quebrar uma regra ou duas, de tomar o paladar do “pecado” inofensivo. Quem se incomoda e não se acomoda, é de boa linhagem e da melhor cepa.

RD: Como decorre o teu processo criativo e de escrita?

RM: Prefiro criar de raiz, inventar uma história, sempre à volta de temas do quotidiano. Porém, as personagens e os lugares são-me sempre comuns, apenas lhes mudei os nomes. Traço os perfis físicos e psicológicos, de acordo com as pessoas que conheço e com quem me cruzo. Gosto de enquadrar os meus livros em contextos históricos. Julgo que faz sentido, todos somos fruto das circunstâncias. Sou muito descritivo, talvez em excesso. Sou muito minucioso e cuidadoso com as palavras, não sei se sempre consigo, mas sou. Demoro muito tempo a escrever. De uma forma obsessiva, procuro não repetir as palavras, no curto e médio espaço do texto. Invisto num vocabulário diversificado. Tenho sempre uma grelha onde vou apontando as datas fundamentais da narrativa, nomes de locais e personagens, relações de parentesco ou de amizade. Frequentemente, surgem personagens inesperados, que a própria dinâmica da história reclama. Não os evito. É no computador que desenho a história. Depois, transponho cada capítulo para o telemóvel e é aí que vou tomando notas.

 

Gosto do artigo
Palavras-chave
Publicado por
Publicado em Última Hora