Num fim de tarde muito quente de verão, daqueles normais em Portugal inteiro menos na serra da Freita onde se apruma Manhouce, o sino tocou a finados.
O cemitério não tragava os ossos de ninguém há três luas pelo menos. O tio Joaquim já se tinha despedido deste mundo um par de vezes. O boato tinha corrido, mas ele ainda cá estava para contar, vez após vez como tinha enganado a morte. Até aos 97.
A sua vida foi na serra. Apesar de ser o mais novo de 11, três morreram pequenos: os gémeos antes dele e uma menina com dois anos de meningite. Apesar disso, de ser o Benjamim, a vida foi madrasta com ele como com os mais velhos. Nunca teve mais que três pares de calças. Uns para botar o cote, outros para os domingos, e umas que pairavam entre os dois extremos.
Nasceu pobre, viveu pobre, morreu pobre. Dons? O brilho nos olhos e a vontade de demonstrar de forma sublime o que pode a grandeza humana.
Desde menino sempre foi acarinhado por todos. O seu sorriso de menino, escarolado, enchia Manhouce, da Bustarenga ao Gestoso. Apesar do trabalho árduo, das malhas às mondas, das desfolhadas às ceifas, o tio Quim como carinhosamente o chamavam, sempre aparecia com um sorriso. Pobre, mas digno. Com pouca coisa no armário, mas sempre asseado.
Já ele era homem, muito depois do fim da guerra, quando chegou a luz. E com ela a primeira telefonia. Depois a caixinha mágica. Uma, que aquilo era coisa que poucos bolsos podiam comprar. Depois os convites. Para o Brasil onde tinha irmãos, para França onde procuraram futuro sobrinhos. Para a capital do império. Mas nunca se deixou iludir.
Desenraizá-lo seria matá-lo. Ele sabia disso. E preferiu sempre a felicidade do pouco que a fartura do muito. Na altura dos namoros ainda andou com esta e com aquela. Bem, andar é uma palavra grande. Que as namoradeiras eram altas e não havia cá a história de começar as relações pelo filho, quero dizer, pelo fim. Mas nunca nenhuma lhe fez perder a cabeça.
Os pais morreram de velhos, os dois de trombose. Há sessenta anos morria-se muito disso. Mas na altura ser velho era diferente. Uma vez disseram ao pai dele, que andava com duas muletas: “então Manel, de muletas?” Ele anuiu dizendo: “Pois é Zé. Cinquenta já cá cantam”. Cantavam e mandavam. Passou pela escola, fez exame da quarta numa daquelas folhas azuis de 25 linhas e ficou bem à primeira. E só foi à escola por ser o mais novo. Os outros, os que sabiam ler, fizeram todos a escola de grandes.
O que se dizia na freguesia era, aprender a ler para quê se não há que se leia? E era verdade. Mourejava-se de sol a sol. De inverno mourejava-se menos, mais fiavam as mulheres. Faziam enchidos. Bordavam. Comia-se ao colo, e se houvesse concertina, já se montava o arraial. A vida era dura mas havia alegria. Um pontapé numa pedra e apareciam dois garotos com fisgas ou canas de pesca improvisadas. As meninas eram mais caseiras. Não podiam sair assim umas com as outras.
Depois disso, o homem a ir à lua, coisas de americanos. E a lua tão longe a marimbar-se para os homens. Depois já nos setentas, uma senhora de calças. E não é que fica bem a cachopa? Depois o fim do regedor e do estado novo que era mais velho que ele. Depois votar. Depois a CEE, o pagarem por ter terras, e ele com dois arretos pequeninos que não davam direito a nada. Depois o padre, Deus o tenha, que o ajudou para ter uma tensa. Pagarem sem fazer nada. Vivemos tempos memoráveis. E com isso de vez em quando já ia de táxi a Santa Cruz da Trapa. Outras vezes à Cidade. Mas eram lugares em que se sentia estranho. Sentia genuinamente que não era dali. E tinha razão. Depois da tensa a junta até fez umas obritas em casa. Honra lhe seja. Deixou de fazer no bacio, com o vosso perdão, no penico que estava em casa há tanta geração que o esmalte tinha saltado todo. Era negrinho como o que se lá punha.
Cimentaram o chão de terra que agora já não se usava e que havia bichos a dormir melhor na cidade. Isso ouviu-o ele de uma doutora muito bem posta da caixa de Viseu que tinha duas meninas em casa. Disse-lhe ela. Duas cadelas que viviam como ministras. Gente doida. Passou a vida toda ali, de onde era, sem nunca se meter com ninguém e sem que ninguém se metesse com ele. Toda a gente o respeitava pelo que era. Tirava o chapéu quando passavam por ele. Já ninguém fazia isso e ele insistia. E sorria depois. Sabia que achavam piada. E ele gostava disso também. Foi o que aprendeu desde que se lembra.
Era pequenino e punha os sapatos de ir ver a madrinha. Pedir a benção depois da missa ao Domingo ao romper do dia. A ver se chovia qualquer coisa de Páscoa a Páscoa. A casa dele era pobre. A da madrinha, remediada. E por isso foi madrinha dele e dos outros todos. Era assim antigamente.
Na última década era o centro social da paróquia a levar-lhe a comida. A limpar o chão bonito que pôs a junta. E sempre via as pequenas do centro que a idade já não estava para muitas caminhadas. E mediam a tensão, penteavam. Tratavam-no como se fosse o avô que já tinham perdido. E podia ser. Aqueles braços enfraquecidos pelo tempo já tinham sido a grande força daquela terra. Muito se chorou naqueles braços. Muito ouviram aqueles ouvidos agora forrados com pelos brancos. Muito viram aqueles olhos profundos sombreados pelas sobrancelhas que nunca viram tesoura.
Ele partiu. Mas a sua memória permanecerá viva para sempre. A terra deve-lhe muito, e a freguesia, não podendo ser como ele, vai comungar sempre, o que ele foi, e o que na sua pobreza e simplicidade, o que ele fez.
Deus o tenha, tio Quim.
Cristovão Cunha
Padre da Diocese de Viseu