Zygmunt Bauman e a Jornada da Juventude

Francisco, vindo do mundo da pobreza e da religião próxima, opositor ao clericalismo e ao enfatuamento, concedeu a cada uma destas grandes manifestações um sentido único de proximidade, de partilha, de comunhão

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  • 11:17 | Segunda-feira, 07 de Agosto de 2023
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Quando analisamos os rankings de liberdade e democracia em que se analisam os Estados, encontramos Portugal nos primeiros lugares. Somos um dos países mais livres do mundo, a nossa realidade, mesmo com a avassaladora invasão das redes sociais, onde a mentira e o ódio imperam, permite-nos discordar e militar nessa discordância.

A Jornada Mundial da Juventude, que a Igreja Católica promove nesta primeira semana de agosto, é bem o exemplo dessa liberdade.

Os argumentos dos opositores, de várias naturezas e de diferentes interesses, assentam, basicamente, em três linhas argumentativas: 1) um Estado laico não deve apoiar iniciativas das Igrejas; 2) a existir apoio público deve reduzir-se ao mínimo; 3) esta Jornada tem mais inconvenientes do que vantagens para Portugal.


Confesso que tenho dificuldade em aceitar qualquer um destes raciocínios, encontrar, de um ponto de vista do interesse nacional, razoabilidade em cada um deles.

Um Estado laico não é um Estado totalitário onde as religiões são menosprezadas, tendencialmente abolidas. Ao Estado cumpre ter uma atitude de aceitação, de apoio e de tratamento adequado tendo em conta o peso que cada uma das crenças assume na sociedade. Ao Estado cumpre assegurar a total liberdade de culto e de ação dos ministros que a ele se dedicam. Vivemos num país onde não se verificam impedimentos e quando afloram, vindos dos extremismos, são combatidos.

O Estado deve apoiar as iniciativas das religiões de acordo com a sua importância. Os canais públicos de televisão fazem isso sem discriminação, os poderes locais praticam esse apoio sem segregação. E o que é o mínimo? O mínimo é a disponibilidade para cumprir o que nos cabe, a todos, perante cada iniciativa. Um encontro internacional das Igrejas Evangélicas é sempre muito menor do que qualquer 13 de maio em Fátima e essa circunstância não pode deixar de ser, sempre, equacionada.

A Jornada traz mais inconvenientes do que vantagens para Portugal, escrevem. É o mais asnático dos argumentos que só sai da cabeça de quem não entende nada do que é o país, mesmo que seja muito bom cronista. A Jornada não foi só Lisboa, foi Portugal inteiro, foi metade do mundo em anos e anos de preparação. A Jornada não impediu que os hotéis de luxo estivessem cheios, que os AL’s estivessem repletos, e esses dados são muito relevantes para se saber que Lisboa continua a funcionar durante estes dias. Está claro, os solitários e zangados comentadores detestam ver jovens alegres, divertidos, barulhentos, horrorizam-se por alguém lhes “mijar” na porta por não encontrar um WC próximo, detestam constatar que a Igreja é muito mais do que beatas vestidas de negro, do que curas furiosos com o progresso.

Esta jornada não é só Igreja, não é só comunhão e oração. Há muito mais do que um olhar para o momento, há um submergir na “realidade líquida” em que hoje vivemos.

Realidade líquida, que conceito é este que proponho integrar na análise sobre a Jornada?

Fernando Henrique Cardoso, antigo Presidente do Brasil e sociólogo de formação e profissão, terá dito (ele negou sempre, mas a fase campeou como se sua fosse) que “Os filósofos se ignoram e os sociólogos se odeiam”.

A frase de FHC é relevante para chegarmos a Zygmunt Bauman, o verdadeiro autor da ideia do “mundo líquido” para a maior parte dos cientistas sociais contemporâneos. Para outros, recalcitrados sociólogos como o espanhol Enrique Calvo, que o odiava por ter sido um comunista dissidente e judeu, Bauman foi um simples e menor organizador do tal conceito “líquido” aplicado ao hoje.

A verdade é que Bauman é marcante, único. Tudo na sua longa análise é líquido, da educação à história, da vida à morte.

Essa liquidez advém do individualismo que impede relações fortes, do mundo consumista e mercantilista em que até o Homem se vai transformando em produto, do amor que se esvai numa espécie de contrato que determina uma relação. O hedonismo, o narcisismo são pragas que levam cada ser pensante à morte antecipada, à total ausência de valor pela vida.

As jornadas começaram com João Paulo II num mundo completamente diferente, a terra dos blocos, a luta entre capitalismo e comunismo, a pretensa igualdade contra a pretensa liberdade. Bento XVI, como grande filósofo e teólogo que era, iniciou a mudança de matriz destes encontros de jovens. Francisco, vindo do mundo da pobreza e da religião cercana, opositor ao clericalismo e ao enfatuamento, concedeu a cada uma destas grandes manifestações um sentido único de proximidade, de partilha, de comunhão.

Em boa verdade, as jornadas de Francisco vieram dar conteúdo à vacina contra o “tempo líquido” que o irmana o Papa com Bauman.

Francisco, tanto quanto Bauman, proclama uma educação que apronte para a vida, que a escola não seja só o concurso para o sucesso com vista a uma qualquer profissão. Os jovens de hoje são preparados para o que o mundo é hoje e não para antecipar o mundo que vai existir.

Francisco, tanto quanto Bauman, proclama uma vida de observação, de convivência. E essa vida não é a do passeio num shopping onde se aprende a gastar o que se não tem, onde se iniciam os grandes problemas com a alimentação processada do tempo corrente. As crianças e os jovens deixaram de olhar as maçãs, de brincar com os perus, de ouvir cantar os galos. Deixaram de correr e de cair nas pedras de uma vereda, num qualquer monte de onde se veja o mundo com novos horizontes.

Francisco, tanto quanto Bauman, alerta-nos para as coisas que não paramos de dar aos filhos e aos netos, coisas que os atulham de plástico, elementos que os alienam desde os primeiros dias. Tudo é o caminho para mais, para deitar fora logo nos primeiros dias; tudo é um caminho sem retorno para impedir o bom entendimento do tempo em que haverá menos, em que as dificuldades, que vão existir, não provoquem a revolta.

Francisco, tanto quanto Bauman, alerta-nos para o quanto estamos errados a fazer o que cada uma das crianças deveria fazer por si, como estamos a introduzir a desresponsabilização, como estamos a encaminhar uma geração para o não saber como lidar com a frustração. Não há mais tarefas que cumpram a cada um, não há mais exigência perante a repartição de obrigações. Os pais são hoje escravos dos filhos, não porque estes assim o exijam, mas porque assim foram criados, formados.

Francisco, tanto quanto Bauman, implica-nos sobre o valor do preço e da marca, não pelo valor intrínseco que elas incorporam. As marcas, a televisão, o capitalismo sem limites, sim capitalismo, a palavra que nem João Paulo II ou Bento XVI trouxeram ao discurso papal, mas que Francisco não se cansa de referir. Francisco está longe de ser um comunista, seja lá o que for hoje como Bauman também nos diz, mas sabe bem como estamos agarrados à cultura do desperdício, aos avarentos e ignotos mercados.

Francisco, tanto quanto Bauman, implica-nos para a incapacidade da partilha, o ato fraterno do dar sem cobrar, para o agradecimento sem obrigações. E neste dar e receber, nada é como durante séculos foi – uma caridade dos ricos que não deixava eliminar essa mesma pobreza; como também não deve ser – a caridade dos Estados que consolidam e ampliam a burocracia e as estatísticas agregadas a essa pobreza.

Francisco, tanto quanto Bauman, incita-nos a não valorizarmos os ídolos, a não fazermos de humanos o máximo a que se pode ambicionar. Os humanos são frágeis, a idolatria é o primeiro passo para a deceção. Que cada jovem seja o seu próprio ídolo na capacidade de se dar, de partilhar, de se realizar no anonimato. Que cada um se ganhe em equilíbrio emocional sem perder a simplicidade do exemplo.

E, tão importante quanto o que se foi dito, Francisco e Bauman, reivindicam aos pais que sejam exemplo, que não peçam nada aos filhos que eles não estejam dispostos a realizar. O fanatismo, o consumismo, o orgulho, o menosprezo, o descuido e a desatenção são os piores exemplos que os pais podem transmitir às crianças deste tempo.

Esta Jornada é, portanto, muito mais do que rezar. É uma outra visão do tempo em que vivemos, um momento em que, como disse Dom Américo Aguiar, os jovens partilham, vivem, amam e caminham nos braços de um Igreja que não lhes pergunta de onde vêm, quem são e que Deus professam. É o ecumenismo em todo o seu esplendor, é a dimensão espiritual que faz o Homem no caminho do bem comum.

 

Ascenso Simões

 

(FOTO DR)

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