Para um município que tanto se orgulha de ter ”mais de 2.500 anos de história” (!) convenhamos que é muito estranho que Viseu não tenha mais de três ruas com nomes de mulheres viseenses: Maria do Céu Mendes (1847-1933) , uma dos melhores pianistas do seu tempo, que embora tenha nascido em Santa Comba Dão, viveu e morreu em Viseu; Augusta Cruz (1869-1901), cantora lírica com uma carreira de sucesso em Portugal e concertos em várias cidades de Itália, México, Cuba e Brasil; Rita Amada de Jesus (1848-1913), madre e beata, nascida em Ribafeita onde foi baptizada como Rita Lopes de Almeida, fundadora do Instituto das Irmãs de Jesus Maria José (responsáveis pela igreja estilo quilha de barco capotado, encalhada no Hospital da CUF, que o anterior bispo de Viseu, Ilídio Leandro, denunciou ter custado mais de um milhão de euros, lamentando ser necessário outro tanto para a acabar, obras que a diocese de Viseu acabou por assumir, em parceria com a Câmara Municipal e a Visabeira), beatificada pelo papa Bento XVI por um alegado milagre de cura de uma mulher cancerosa, no Brasil, em 1989 (!), reconhecido por João Paulo II (o papa que beatificou 1.340 pessoas, mais do que os anteriores papas todos juntos).
Para além destas, ainda há uma Rua Florbela Espanca, em Abraveses, mas aquela grande poetisa não teve, que eu saiba, qualquer relação com Viseu. Não faltam porém muitas ruas de “nossas senhoras”- Nª Srª da Conceição, Nª Srª de Fátima, Srª da Piedade, Srª da Boa Morte – heterónimos, suponho, da mesma senhora que herdou as virtudes, mais ou menos mágicas, das deusas dos povos pagãos que habitaram a Península, também eles politeístas.
Há cerca de um mês, Manuela Antunes, eleita pelo BE na Assembleia de Freguesia de Viseu, apresentou uma recomendação para ser dado o nome de uma rua de Viseu a uma das mais distintas mulheres nascidas na nossa cidade, Beatriz Pinheiro de Lemos (1871-1922), professora, poetisa e prosadora, música, actriz amadora e activa feminista. Foi ainda fundadora e dirigente, com o seu marido, o poeta Carlos de Lemos, da revista literária Ave Azul (título recuperado há mais de duas décadas pelo nosso conterrâneo, Martim de Gouveia e Sousa). Note-se que já em 26 de Abril de 1923, uma ano depois do seu falecimento, em sessão ordinária da Câmara Municipal de Viseu, o vereador Monteiro Júnior convidava a “Comissão Executiva a, na primeira oportunidade, dar a uma rua ou praça de Viseu o nome de D. Beatriz Pinheiro, em atenção às altas qualidades desta escritora e poetisa ilustre que foi desta cidade”. Apesar de aprovada por unanimidade, a hipocrisia da burguesia conservadora e católica da nossa urbe, nunca lhe perdoou a militância republicana e o activismo em prol dos direitos das mulheres, incluindo o direito ao divórcio, e a oportunidade nunca surgiu até hoje.
Dias depois da morte de Beatriz Pinheiro, o escritor Tomás da Fonseca, em 28.10.1922, escreveu, em Coimbra, uma nota necrológica em que a reconhecia como “uma das nossas figuras literárias de mais real e inconfundível merecimento (…)”. “Quanto ao que da sua obra literária nos resta, um dia virá em que se lhe faça a devida justiça.”
Quase cem anos depois, por momentos, deu-nos a impressão de que alguma coisa tinha mudado na nossa cidade. A Junta de Freguesia de Viseu levou à última sessão da Assembleia de Freguesia uma proposta para atribuição do nome “Rua Beatriz Pinheiro” a um arruamento que liga a Rua João Mendes à Rua Simões Dias, com passagem pelo Bairro Maria do Céu Mendes. Acontece que aquele arruamento nem chega a ser verdadeiramente uma rua, uma vez que não tem um único número de porta, dando apenas para algumas garagens de moradores do Bairro e afunila numa esquina das traseiras do prédio que aloja a Cooperativa da Misericórdia, onde só passa um peão.
Na verdade, a proposta da Junta , apesar de começar por reconhecer o relevante papel de Beatriz Pinheiro no panorama literário do país e na vida cívica e cultural de Viseu e o seu activismo, enquanto feminista, pelo direito das mulheres ao trabalho remunerado, ao salário justo, à educação, ao ensino, ao divórcio e ao laicismo, quer no ensino, quer no exercício da enfermagem, acaba por, na prática, atribuir o seu nome a um beco. A proposta foi aprovada por unanimidade por quem nem sequer devia conhecer o arruamento e por quem achou que, com estes autarcas, não valia a pena correr o risco de esperar mais cem anos para se fazer a devida justiça a Beatriz Pinheiro.
Numa série televisiva espanhola, a passar na RTP 2, “La Otra Mirada”, traduzida por “Uma Visão Diferente” (de qualidade semelhante à da série catalã, “Merli”, sobre a relação de um professor de filosofia com os seus alunos de uma escola secundária), as alunas e as professoras de um colégio interno feminino, em Sevilha, no princípio do século XX, vêem-se confrontadas com os preconceitos da sociedade machista andaluza. Influenciadas por uma professora feminista, propõem ao presidente da Câmara, alterar o nome da rua do colégio para “Travessa Carmen de Burgos” para assim homenagearem a professora, escritora, tradutora, jornalista e activa defensora dos direitos das mulheres espanholas, incluindo o direito ao voto. O “alcaide” de Sevilha respondeu que aceitaria a alteração do nome da rua, mas no dia da inauguração, ao descerrar a placa, surpreendeu alunas e professoras com a troca do nome de Carmen de Burgos pelo de Juan Varela, um “ilustre defensor da educação das mulheres assente em 3 pilares: recato, honestidade e decência”. As alunas reagiram, com a cumplicidade das professoras, pintando azulejos que colocaram noutra placa, ao lado da oficial, com o nome “Calle de las Mujeres Olvidadas”.
Quase cem anos depois, parece que as e os viseenses também terão de criar uma “Rua das Mulheres Esquecidas” para que, em breve, os nossos autarcas se lembrem das mulheres que mais se destacaram a nível nacional e local, homenageando-as devidamente na toponímia da nossa cidade.
Podiam começar por Judith Teixeira (1880-1959), uma corajosa mulher viseense que defrontou os preconceitos e o conservadorismo do seu tempo, ombreou com os grandes poetas modernistas e vanguardistas do nosso país e até já deu nome a um prémio de poesia, instituído, em 2016, pela Câmara Municipal de Viseu em parceria com a Editora Edições Esgotadas.