Estive em Évora, dois dias, a participar no Encontro Nacional dos Cafés Memória, uma das múltiplas atividades em que nós (Centro de Apoio a Pessoas com Alzheimer e outras Demências) estivemos envolvidos, no âmbito do Mês Mundial da Doença de Alzheimer.
Tive a sorte de encontrar um simpático vendedor de quiosque que me recomendou o n.º 1 do Jornal “Alentejo Ilustrado”, num regresso às bancas 40 anos depois (há esperança para a imprensa regional!). Ao ler fiquei a saber, desconhecia até então, que Évora será Capital Europeia da Cultura, em 2027, sob o epíteto “Devagar”. No editorial, o Diretor, Luís Godinho, dá nota de uma notícia de 1905, publicada na 1.ª vida do periódico alentejano: “Se hoje são as raspadinhas ou as apostas através da internet, em 1905 era a existência de três roletas na cidade de Évora que levava o redator de “O Alentejo Ilustrado” a escrever ao Governador Civil do distrito: «Hoje que se vê por essas ruas trabalhadores e operários quási mendigando, por falta de trabalho, apresenta-se-lhes para consolação três roletas.»”
Há realidades que não mudam ou mudam muito devagar… 118 anos depois, os perfis dos jogadores não se terão alterado muito…
Francisco Assis, presidente do Conselho Económico e Social, encomendou o estudo académico “Quem paga a Raspadinha?”, coordenado por Pedro Morgado e Luís Aguiar-Conraria. As conclusões, não sendo propriamente uma grande novidade, o problema é conhecido há anos e o Estado nada faz para o resolver, são preocupantes e sistematizam uma tendência assustadora. São raspados, todos os dias, 4,1 milhões de euros aos portugueses. Portugal é o país com maior gasto per capita em lotaria instantânea, dez vezes mais do que os espanhóis, mais do dobro da média europeia. O vício da raspadinha afeta cem mil adultos, 30 mil de forma patológica: são os mais pobres – aqueles que auferem rendimentos mensais entre os 400 euros e 664 euros – e os mais velhos – frequentemente têm mais de 66 anos – e com pior saúde mental os que mais jogam.
No dia 06 de abril de 2021 escrevi o artigo “RASPADINHA, 3 EM CADA 4 JOGADORES SÃO POBRES”. Dois anos e meio depois, a reflexão mantém-se atual. As preocupações dos responsáveis políticos, à data, que originaram parcas declarações circunstanciais, não passaram de mera retórica inconsequente. Também em 2021, Daniel Oliveira, assinou no Expresso o artigo “Raspar o Pobre”: “Não deixa de ser perverso que este jogo seja promovido por uma instituição que se dedica ao combate à pobreza. A pobreza não resulta do jogo, claro está. Mas quando mais de metade dos recursos da Santa Casa vêm daqui (cerca de 1600 milhões de euros de vendas brutas, em 2018), há uma dependência financeira que desmotiva o combate ao problema.”
Desta vez será diferente? Tendo o estudo um carácter científico, coordenado por reputados cientistas sociais, levará à tomada de medidas por parte do da Santa Casa ou do Governo? A nova Provedora, Ana Jorge, disse que é preciso conversar. Creditemos-lhe, para já, a iniciativa de promover uma auditoria. A senhora Ministra, Ana Mendes Godinho, considera que é preciso avaliar e conhecer melhor o problema para depois avançar com medidas.
Apesar dos impactos negativos que este jogo, altamente viciante, tem nas pessoas mais frágeis, a SCML não parece querer resolver o problema. Quer escalar e internacionalizar o negócio para o continente africano e Brasil, aplicando uma receita vencedora de captação de raspadores pobres para um jogo fácil, aceite socialmente, de “baixo custo”, com um possível prémio imediato.
Para escalar o modelo, foram investidos +20 milhões de euros na estratégia Santa Casa Global sem que tenha sido alcançada qualquer receita. O Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social (MTSSS) já pediu uma auditoria externa à Santa Casa Global. As contas da SCML não foram homologadas com a justificação que se segue: “está em curso uma avaliação profunda a todas as rubricas (…) com a grande variação que houve, seja na despesa seja na receita, implicou uma avaliação e uma análise profunda das contas, até para garantir o futuro (…) e garantir a sua sustentabilidade.” Talvez também faça sentido ouvir o anterior provedor, o Dr. Edmundo Martinho. É só uma ideia, até porque é difícil compreender as razões que levam a um investimento tão avultado num modelo de negócio já testado e com muitas provas dadas. Em África poderão não ter tantos clientes mais velhos, mas o potencial de pobres neste continente e no Brasil, que também envelhece a um ritmo acelerado, é quase infinito.
Como disse, já sabem que sou seu confesso admirador, a Clara Ferreira Alves, no Eixo do Mal: “A Santa Casa será tudo menos santa. É um casino chinês. Tira aos pobres, rouba aos pobres, para dar aos pobres. Os milhões desaparecem sem que seja dada uma resposta cabal.” Não vou tão longe, mas não podem ficar dúvidas quanto à utilização dos milhões. A grandiosidade do trabalho da SCML não se compadece com ações duvidosas, falta de transparência e um clima de suspeição que limite e dificulte a sua intervenção social e comunitária.