Velhos: atados, sedados, desnutridos, sujos

E em Portugal, como será? Haverá pessoas amarradas? E sedadas? Um dos exercícios práticos, na formação que fiz, foi estar amarrado a uma cadeira durante 20 minutos. Coloque-se à prova, peça para o amarrem numa cadeira e o deixarem só. Se for corajoso, repita o exercício na cama. Imagine-se dias, semanas, meses, com duas opções amarrado/sedado na cadeira/cama…  

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  • 11:32 | Quarta-feira, 09 de Fevereiro de 2022
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Ouvimos, muitas vezes, que o tempo passa a correr, mas teimamos em não acreditar. Envelhecemos todos os dias, queiramos ou não, apesar de alguns profetas anunciarem a eminência da fórmula da eterna juventude, da cura da velhice e até da imortalidade. Compreendo a esperança, a expectativa e o desejo de vivermos mais anos.

Creio, todavia, que o objetivo central deve ser a busca, incessante, da criação das condições necessárias para vivermos com mais qualidade, junto daqueles que amamos e dão um propósito às nossas vidas.

Já se imaginou, após toda uma vida de trabalho; dedicação à família, aos amigos e à comunidade, velho; institucionalizado, com ou sem o seu consentimento,  amarrado, à vez, à cama e ao sofá, sedado, desnutrido e sujo?


Faço, intencionalmente, uso da palavra velho porque, com diz uma das mais conceituadas estudiosas do envelhecimento, Mirian Goldenberg – “A velhofobia se escancarou e saiu do armário”. Não nos deixemos iludir, como refere a antropóloga, “Velho é uma palavra carregada de estigmas, de preconceitos, de doenças, de inutilidade, de algo descartável”. Começo a absorver a ideia de usar mais a palavra velho, de modo a desconstruir a carga negativa que esta encerra, em resultado do estigma e do idadismo fortemente presentes na comunidade. 

Em 2018, tive a sorte de encontrar um livro que me marcou: Cuidar: Una revolución en el cuidado de las personas (Ariel), escrito pela médica geriátrica e presidente da Fundação Cuidados Dignos Ana Urrutia, uma das precursoras da cultura anti contenções físicas ou farmacológicas, a par do trabalho desenvolvido, desde 2004, pela CEOMA com o projeto Desatar, beneficiando da experiência adquirida, nos Estados Unidos da América, pelo doutor António Burgueño Torijano.

Ler é bom, mas gosto de ver in loco para perceber como funciona na prática. Viajei algumas vezes até Bilbao e Guernica e pude observar o trabalho de excelência, sustentado na Norma Libera-Care. Tenho tentado, sem sucesso, fazer um trabalho que contribua para a eliminação ou redução ao mínimo, da utilização de contenções, no nosso país. O resultado das iniciativas tem sido, invariavelmente, o insucesso, o monólogo, o isolamento e, uma ou outra vez, algum desdém. Segundo os dados da CEOMA, na vizinha Espanha, 55.000 pessoas são atadas e sedadas nos lares espanhóis, 17% da população institucionalizada. Se lhes somarmos os que estão sujeitos ao mesmo tratamento, nas suas casas…

O argumento da segurança, obsoleto e inaceitável, não pode continuar a ocultar os verdadeiros motivos: método mais fácil e mais barato, mitigando a falta de recursos humanos e de formação dos profissionais. A utilização indevida e indiscriminada desta metodologia “medieval” é, claramente, uma forma de mau trato com efeitos adversos e perversos para as vítimas: aumento da incontinência; atrofia muscular; maior agitação… E em Portugal, como será? Haverá pessoas amarradas? E sedadas? Um dos exercícios práticos, na formação que fiz, foi estar amarrado a uma cadeira durante 20 minutos. Coloque-se à prova, peça para o amarrem numa cadeira e o deixarem só. Se for corajoso, repita o exercício na cama. Imagine-se dias, semanas, meses, com duas opções amarrado/sedado na cadeira/cama…

Foi publicado, em França, em janeiro, o livro “Les Fossoyeurs”, de Victor Castanet (Fayard). No livro “Os Coveiros”, o jornalista, após três anos de investigação, descreve uma gestão na qual os cuidados de higiene e até as refeições dos residentes eram “racionados” em prol do lucro, no Grupo Orpea, cotado na bolsa em Paris. Já estão a decorrer duas investigações. A ministra delegada para a Autonomia das Pessoas Idosas, Brigitte Bourguignon, já leu o livro e expressou o seu “desgosto pelas práticas de gestão” da empresa Orpea. Foi demitido o administrador-geral, Yves Le Masne, que dirigia a entidade há cerca de uma década. Numa rápida pesquisa, no site do grupo, ficamos a saber que está em Portugal, desde 2018 e que possui 10 residências, um hospital e uma clínica, totalizando uma oferta de 907 camas.  

 

 

Já se imaginou a pagar mais de 2000 euros por mês, sem que lhe sejam garantidos cuidados de qualidade, dignos, humanos?

Sim, temos assistido, como alertou Manuel Rico (Verguenza! El Escándalo de las Residencias, Planeta, 2021), à proliferação em estabelecimentos, que acolhem pessoa idosas, detidos por sociedades privadas cotadas em bolsa. Nada me move, já o afirmei noutras ocasiões, contra a iniciativa privada e, obviamente, respeito a presunção da inocência e o direito à defesa dos visados. O que não posso, não podemos, enquanto comunidade, é assistir, impávidos e serenos, aos fundos de investimento e às grandes multinacionais a apoderarem-se do “apetecível negócio geriátrico”, numa lógica especulativa que visa obter o máximo benefício, influenciando diretamente os cuidados que recebem os nossos idosos.

“Os lares privados cotados em bolsa representam o último estado de exploração do homem pelo homem. Ou mais exatamente do homem inválido pelo homem válido (…)

A privatização de todas as atividades humanas, do nascimento à morte, organiza a sociedade de maneira catastrófica. A mercantilização da vida destrói, não somente os ecossistemas, mas também as relações entre os indivíduos.” (RISS, Vos Escarres Valent de L’or[1], Editorial do Charlie Hebdo, 2/2/2022)

 

[1] As suas escaras valem ouro

 

(Foto DR)

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