O país conheceu, há poucos dias, a constituição da Comissão que vai promover a revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN).
O despacho que a cria não faz mais do que cumprir a incumbência que procede da Lei de Defesa Nacional, mas podia ter inovado na perspetiva transversal que a defesa e a segurança implicam, nos dias de hoje, em todos os setores de atividade pública.
Acontece que o CEDN deixou há muito de ser uma ferramenta exclusiva das políticas de Defesa. Passou a ser uma leitura ampla das fragilidades e das potencialidades do nosso país para que se possa garantir a independência e a soberania num mundo cada vez mais interconectado.
O contexto internacional que suporta o CEDN em vigor advém de uma política externa consolidada. José Francisco Pavia e Manuel Monteiro, que estudaram os programas dos Governos desde 1976 até ao inicio desta segunda década do século XXI, identificaram bem os três pilares dessa política – a visão atlantista de Portugal, o nosso destino europeu e a comunidade de língua portuguesa.
Acontece que Augusto Santos Silva, enquanto MNE, veio conceber uma leitura complementar da política de assuntos externos que, para além do trilátero já indicado, lhe junta, em segunda linha, a diáspora, a internacionalização da economia e o multilateralismo.
As alterações recentes, verificadas na visão estratégica da NATO, poderão ainda influenciar a nossa leitura interna. Em boa verdade, se fizermos um exame atento do CEDN de 2013, já Portugal antecipara algumas alterações atlantistas que este ano se asseveraram.
Olhando agora, em concreto, as linhas de política, talvez se deva considerar, para além das tradicionais visões regionais, que a NATO e o CEDN de 2013 já elencavam, uma outra preocupação com os Polares, não tardando a que estes se possam transformar em espaços estratégicos determinantes. Também será pertinente uma visão do Espaço enquanto “território”, agora elemento essencial para a soberania dos Estados e das estruturas em que se integram tendo em conta a privatização desse mesmo Espaço.
Portugal vai além da Defesa nas questões das políticas de cooperação. As pertinências que resultam da visão constitucional de 1976, menorizando a Defesa nas políticas de segurança, criam um problema que num prazo curto deveria ser resolvido. O novo Conceito Estratégico bem poderia inovar nas baias constitucionais do empenhamento das Forças Armadas.
O nosso país tem sido relevante na segurança atlântica e europeia através de uma visão mais flexível da Armada e através da participação consistente da GNR em ações multilaterais que se ligam às políticas de migrações e refugidos. Esta questão carece de uma outra limpidez no novo Conceito Estratégico e isso deverá levar a que a Administração Interna tenha especial participação nos trabalhos, olhando as novas realidades security e safety que o mundo de hoje nos concede.
Não tenhamos dúvidas, a determinação dos ativos pátrios e os objetivos nacionais permanentes e conjunturais deverão assumir-se numa triangulação efetiva entre o MNE, o MDN e o MAI que o novo Conceito Estratégico não pode deixar de ponderar.
Olhamos agora para o que alguns identificam como conceito de ação e outros indicam como linhas de responsabilidade.
Divididas pelas áreas da soberania tradicional, soberania das pessoas e soberania do território, alguns dos integrantes da Comissão têm vindo a elencar novas obrigações para os poderes públicos.
Se a posição multilateral de Portugal tem vindo a ser objeto de relevante sucesso (a eleição de António Guterres assim o demonstra), se a nossa política de defesa assente na nossa permanente disponibilidade atlântica não se nega (mesmo que os equilíbrios tenham vindo a desgraduar a importância de Portugal na distribuição de estruturas relevantes da NATO), há três áreas em que Portugal precisa de caminhar com mais consistência e com mais saber. A primeira é a das Informações, muito baseada em fontes abertas e pouco capaz de carrear informação valiosa no contexto das nossas incumbências internacionais; a segunda é a da dimensão ciber que se atravessa nos assuntos públicos e privados; a terceira é a participação de Portugal numa futura estrutura militar europeia, assunto que não se pode omitir. Em nenhuma destas vertentes podemos adiar as nossas posição e ação. Cada dia é uma eternidade perante as emergências.
Se no setor da soberania das pessoas a língua e a cultura são fortes apostas civilizacionais e económicas, as contas públicas saudáveis e a redução acelerada das dívidas pública e privada devem continuar ser centrais para a nossa autonomia de decisão; se a renovação demográfica, esbarrando com a nossa realidade histórica e com a capacidade do país para prover bens e serviços a uma população superior a oito milhões de almas, os trabalhos devem tratá-la com critério; se a justiça continua a ser um elemento central para a afirmação da nossa democracia, uma nova estratégia deve estender-se ao combate à corrupção e à melhoria do cosmos empresarial.
O acolhimento, a educação, a amplitude religiosa, as influências de estilos de vida, a miscigenação, a segurança, são áreas que Portugal deve antecipar olhando as realidades de outros países e a nossa própria história de nação.
Nesta separação de soberanias encontramos, por fim, a soberania do território. E aqui ganham relevância as alterações climáticas, a qualificação os rios, da costa e da economia da floresta. Nesta última área importa ter presente que não se limitam os incêndios florestais se não houver ganhos visíveis para as populações.
Há, ainda, três questões que Portugal deve assumir como centrais: 1. a quantidade e a qualidade da água com outra nova gestão; 2. a soberania energética e segurança de abastecimento baseadas num mix assente em renováveis e gás natural; 3. a produção agrícola e pecuária, em especial uma nova visão da dignidade do agricultor e de uma qualificação da agricultura familiar e de jardim como complemento do rendimento familiar.
É também neste universo que o mar, sempre o mar, amor e amante de séculos, precisa de uma nova ambição. Iniciou-se entre 2015 e 2019, mas desapareceu no meio de palavras que não resultaram em ações. Não há mar sem um investimento consistente na marinha de guerra; não há mar sem voltarmos a ter importância na pesca e na marinha mercante; não há mar sem a ampliação da investigação; não há mar sem que essa investigação e a indústria, começando pela farmacêutica, se entrosem.
Não pode o país, nesta afirmação do seu Conceito Estratégico, deixar de olhar para os recursos minerais e esquecer que, num mundo em transformação, a exploração de lítio deve avançar. Esta aposta não pode deixar de ser afirmada, ainda, com uma visão de sustentabilidade ambiental e com a transferência de recursos para as populações. O mesmo se reporta na transmutação da política de resíduos, afirmando-se a economia circular e a substituição dos lixos como restos pelo uso dos lixos como energia e matéria prima.
O Governo nomeou uma comissão de reconhecidos especialistas em assuntos externos, defesa e segurança. Nem um só nome merece contestação. Mas o país não pode ser datado nem segregado. Há uma lista imensa de novos académicos que poderiam juntar-se a Ana Santos Pinto e a Bernardo Pires de Lima, há outros pensadores no âmbito partidário que poderiam acompanhar Matos Correia, há outros militares que poderiam somar-se a Vítor Viana.
Sobra a certeza de que a presidência está entregue a quem melhor conhece as áreas de onde nasce um Conceito Estratégico tradicional, Nuno Severiano Teixeira. Talvez ele possa levar o debate a novos sítios e a novas áreas de interesse. A economia real, que nem um nome tem na comissão, irá agradecer uma discussão sobre o futuro. Portugal tem hoje empresários e gestores de âmbito internacional. Ouçam António Simões, Caros Tavares ou Horta Osório. Não tenham medo do nosso aparente provincianismo.