Um filme chamado BES

O Banco de Portugal resolveu. Separou o que considerava ser um banco bom e um banco mau. Antecipava-se a total incapacidade do Banco de Portugal e do governador Carlos Costa para saber olhar a diferença entre um cesto de fruta bom e um outro que pode ficar podre por decorrência da ignorância na sua conservação.

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  • 16:02 | Segunda-feira, 24 de Maio de 2021
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O país leva quase uma década na rodagem de um filme que tem como mote central o desaparecimento do grande banco que foi o BES e os seus impactos na credibilidade interna e externa do sistema financeiro.

Ao contrário do que se pode pensar, o “problema” BES não se situa em 2013/2014, nem sequer nas implicações da intervenção da Troika em 2011. O problema BES prende-se com o facto de Portugal, também a União Europeia, terem posto fim a um modelo de indústria bancária que tinha quase dois séculos, para criar um negócio de tecnologias financeiras que nasceram e se desenvolveram com a globalização crescente a partir das últimas duas décadas do século XX.

Não cumpre nesta análise fazer a história da banca portuguesa do último século, mas não seria honesta qualquer análise se não separássemos o universo bancário em dois grupos: o que se limitava ao financiamento da economia e do Estado; e o que, para além desse universo, também desenvolvia, por si, atividade empresarial na indústria, no turismo ou na agricultura.


Extinta a participação de António Champalimaud no universo financeiro (nunca esquecer o criminoso caso Mundial Confiança/Totta nos tempos áureos do cavaquismo), falhada a criação de instituições financeiras a partir de industriais do Norte, só o BES restou, até tarde, a cumprir o que durante décadas se considerou missão patriótica – financiar e promover investimento privado agregado ao território e acreditando na reputação e na palavra dos operadores.

O BES e o GES, sendo autónomos, sempre foram muito mais do que as investidas “champalimaudianas” e tiveram, ao longo de décadas, uma leitura diferente no universo económico nacional. Lamenta-se, por isso, que o Portugal político e comunicacional de hoje se revele num primarismo demagógico e populista sobre o passado da banca, uma insuficiência vergonhosa na estruturação dos fundamentos de análise perante a sua profunda crise.

Olhemos agora para os tempos de gravação deste longo filme em que estamos como participantes e espectadores.

Take 1

Em 2008, quando alastrou à Europa a grande crise iniciada nos EUA, nenhuma instituição financeira portuguesa estava a salvo. Foi por isso que, no âmbito da ajuda internacional, uma parte dos recursos financeiros se destinou a salvar a banca. O BES, enquanto entidade que conhecia o país, os seus clientes e as suas atividades, avaliou mal os impactos, talvez tivesse a esperança de que poderia (a família que lhe dava nome e com os seus parceiros internacionais) ultrapassar mais uma crise como as que antes tinha vivido. Foi um erro de análise que custou caro, até porque o núcleo central dos grupos, financeiro e industrial, se viria a pulverizar.

Não falhou só a leitura estratégica da administração e dos principais acionistas do BES, falharam os auditores e, principalmente o Banco de Portugal, esse ente arcaico e indolente que nada estava a vislumbrar.

Take 2

Outras instituições financeiras portuguesas recorreram ao apoio disponibilizado pela Troika. Mas, mesmo assim, não resolveram os seus problemas de natureza estratégica, de garantia do centro de decisão em Portugal e de um núcleo acionista suficientemente forte para poderem continuar a cumprir as obrigações de financiamento da economia e de manutenção de alguns centros vitais do tecido empresarial português.

O BPI não é mais um banco português, é um grupo de balcões onde a palavra risco, sempre associada à atividade de financiamento da economia, foi eclipsada; O Santander não é mais do que uma parte da visão imperial da finança espanhola, assumida na Ibéria e refletida nos interesses amplos, também financeiros e também de recursos naturais, das américas; O BCP tem hoje uma visão conservadora da economia portuguesa, assume o financiamento das atividades rendistas e valoriza-se ao nível da prestação de serviços digitais.
Se não fosse a CGD, por teimosia ideológica e visão estratégica, Portugal já era só um front office.

 

Take 3

Quando chegamos a 2014, mesmo depois dos milhares de milhão que foram emprestados, a situação da banca portuguesa era a seguinte: Caixa Geral de Depósitos em situação grave na qualidade dos ativos; BCP com um problema de assunção e fidelização de componentes muito significativas do capital; BPI com uma guerra sem quartel entre acionistas; Santander com a transferência de conhecimento para o nosso vizinho territorial; BANIF em insolvência.

Perante este cenário, que ninguém pode esquecer e a que se deve juntar, ainda, a necessidade de se terminar a extinção do BPN e resolver o dano reputacional que o BPP, por se tratar do banco das elites, havia criado, as autoridades governativas em funções até ao outono de 2015 não consagraram o saber e os apoios necessários para irem colocando as pedras no seu sítio, para irem resolvendo cada problema.

Take 4

O ano 2014 não foi, por isso, o ano em que o BES se apresentou perante a iminência de uma resolução, foi o ano em que o país se encontrou à beira de uma nova e grave crise e agora provocada pelo descrédito global do sistema financeiro nacional e pela incompetência dos governantes e dos supervisores.

Sabíamos há muito da realidade própria em que a banca vivia, da necessidade de se financiar uma economia baseada em investimento público e em compra de casa pelas famílias. Também sabíamos que havia faltado, nas primeiras três décadas de fundos europeus, uma leitura de custo-benefício dos quadros de apoio comunitários. A banca portuguesa, como outras de tantos países, sofreu de males hoje conhecidos e renegados, mas que nenhuma alma contestou ou entendeu limitar.

Voltamos a ter aqui a responsabilidade complementar de auditores e de supervisores, de uma bonomia portuguesa vantajosa que fazia conviver interesses opostos.

 

 

Take 5

No universo financeiro, o BES era o mais importante e o mais determinante agente económico-financeiro nacional. Assim, não podia ter sofrido a desatenção, fruto de um ultramontanismo patético, que o governo português ao tempo revelou. Resolver o banco fazia desaparecer imenso valor situado no próprio banco e no GES, implicava no financiamento corrente de milhares de atividades e fornecedores, punha em causa o valor das participações sociais. Mesmo sabendo-se tudo isto, o caminho foi o “banquicídio”. Num país decente, Governo e Banco de Portugal teriam sabido como resolver o problema da segregação de atividades, de salvaguarda da valiosa instituição financeira e da qualidade do universo industrial, turístico e agrícola que se situava na parte não bancária. Mas faltou engenho e arte, faltou mundo e faltou capacidade para se assumir a responsabilidade de tudo o que estava ainda por conhecer e que atravessava, como já se disse, todo o universo financeiro. Governar não é lavar as mãos. Governar não podia ser o atavismo quase comunista que levou a que o centro nevrálgico do poder político da altura se tivesse afirmado imaculado por nunca ter falado com as administrações dos grupos financeiros.

Take 6

O Banco de Portugal resolveu. Separou o que considerava ser um banco bom e um banco mau. Antecipava-se a total incapacidade do Banco de Portugal e do governador Carlos Costa para saber olhar a diferença entre um cesto de fruta bom e um outro que pode ficar podre por decorrência da ignorância na sua conservação.

O governo, em pleno verão de 2014, num ato relevantíssimo de vilegiatura, autorizou a implosão do BES sem qualquer critério, sem qualquer análise dos impactos.

Situados neste ponto poderemos absolver a família Espírito Santo? A esta pergunta ninguém pode responder com propriedade. Um simples merceeiro devedor, que tenha um plano de pagamentos e o cumpra, não resistirá à falência se todos os credores o executarem no mesmo dia. Também sabemos que a banca, desde que existe, sempre assumiu o risco de emprestar e o sexto sentido de compatibilizar leis e ordens morais. A não ser assim, não teriam os grandes países crescido, não teriam as grandes ideias florescido, não teria a burguesia afirmado a sua supremacia política e cultural.

Take 7

Separados os ativos, nascido o Novo Banco, exterminado o GES, chegamos a 2015 com a ideia de que haveria muitos interessados na compra deste novo ente da borboleta. A ingenuidade nunca poderia ser permitida a Maria Luís Albuquerque, a Carlos Costa e a Sérgio Monteiro. Todos os interessados só se revelavam porque se incluíam no complô para desvalorizar os ativos, conhecerem a realidade frágil da banca portuguesa, debilitar o país. É, como sabemos, o grande negócio dos fundos. Seria impossível vender bem o banco bom e, por isso, mais uma parte dos tais ativos bons que haviam restado da segregação, especialmente de grandes veículos internacionais, foram ocludidos por um ato administrativo do colossal governador Costa. O valor/preço do Novo Banco não mais pararia de escorregar.

Take 8

O governo que inicia funções em novembro de 2015 tem urgências várias. Tratar da falência do BANIF; capitalizar a CGD; salvar o BPI da luta fratricida entre acionistas; encontrar acionistas de referência para o BCP. Não se poderia desejar pior mal a quem entra para uma governação e numa situação parlamentar fragmentada à esquerda.

O negócio estava a ser feito por Sérgio Monteiro, a quem sempre foi reconhecida a competência para privatizar com vantagem para os investidores e com desvantagem para o país, e deveria ser terminado. O banco foi vendido e, para que essa venda se realizasse, foi necessário garantir que o Estado, através do Fundo de Resolução (financiado pelos bancos) sustentasse, por empréstimos, o Novo Banco no seu caminho de recuperação. O valor das “entregas” que o Fundo de Resolução já disponibilizou, para além dos 3,9 mil milhões de euros da capitalização, é de 2,1 mil milhões de euros feitos ao abrigo do mecanismo de capital contingente. Estas entradas deverão ser recuperadas e com juros até à quarta década deste século, o que, tendo em conta os empréstimos aos Estados, é um prazo aceitável.

Take 9

Aproximamo-nos do final do filme. E entram aqui os condimentos da luta política e, também, da luta de classes.

Para a liderança atual direita portuguesa, que originariamente esqueceu o problema e o colocou na clandestinidade, a solução última teria sido a da nacionalização. Rui Rio assume a sua nova veste gonçalvista; para a esquerda à esquerda do PS, o que está em causa é a marcha incessante contra o capital – só nacionalizando toda a banca o país passará ser o último reduto dos amanhãs que cantam.

Estes dois campos têm a opinião pública do seu lado. São três as razões, velhas como a existência do lusitano: 1ª A desconfiança em tudo o que se trate de investimento, financiamento, poder – todos os poderosos são corruptos; 2ª Os bancos só servem quando nos servem a nós, nas nossas aflições e nas nossas necessidades. Uma velha implicação religiosa que comprometeu o desenvolvimento do sul da Europa em contraste com o Centro e Norte deste continente; 3ª O país só teve ladravazes ao longo do tempo. Porque o sucesso, o trabalho, o risco sempre foram atributos dos que se não bastaram com o retângulo e rumaram a outros mundos. Em suma, o caso BES pode ser, também, o reflexo deste eterno Portugal dos Pequeninos.

Take 10

Para avaliar tudo isto, a Assembleia da República vai de inquérito em inquérito. O que se revelou útil de todos os que já aconteceram? A resposta divide-se em duas partes: 1ª revelou-se a ideia profundamente errada de que Portugal se apresenta um país de usurários, que a corrupção é endémica, que as elites nunca pararam na extorsão de um povo sofredor; 2ª revelou-se na total inutilidade dos seus resultados, porque não houve uma mudança radical na supervisão, porque a relação dos auditores com os operadores continua a ser questionada, porque promoveram uma maior e quase intransponível exigência na concessão de crédito.

A prática parlamentar, assumida transversalmente, revelou a tendência e o esforço de discutir tecnicamente cada passo de cada problema, esquecendo-se que os deputados devem avaliar politicamente a ação das administrações públicas e dos governos e aos tribunais cumpre o dever de julgar as práticas criminais acontecidas. No reino das Espanhas foi assim que aconteceu, banqueiros foram para a cadeia, reguladores profundamente transformados, auditores criminalmente responsabilizados. Tudo sem comissões de inquérito reincidentes. Talvez tenhamos muito a aprender com os vizinhos.

De todos os relatórios aprovados podemos encontrar linhas comuns, problemas perenes, situações que nos dizem que a economia quase deixou de contar com a banca e que esta se limita aos serviços (comissões) e ao crédito sem risco.

O que vai sair da atual comissão de inquérito? Nada de relevante que não seja termos gasto tempo, termos aprofundado a nossa depressão coletiva, termos reincidido na identificação das nossas fraquezas.

Este filme pode e deve acabar com Mário Centeno dizendo uma frase – importa encerrar este martírio coletivo e voltar a acreditar que este nosso mundo é um compromisso entre a lei e o risco. Que o risco pode não resultar em sucesso, que os insucessos não podem fechar o financiamento de projetos que criem riqueza e emprego.

 

 

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