“(…)
A morte suava em tua fronte… Esquecer, não!
Uivarei em torno das torres do Kremlin
como as esposas dos Strelsis.”
(de “Requiem” ,1935-1940, de Anna Akhmátova, uma dos maiores poetas da literatura russa e ucraniana, traduzido por Jorge de Sena. Nascida em Odessa, foi pintada pelo amigo Modigliani, em Paris, sofreu a censura estalinista e o cerco a Leninegrado pelas tropas da Alemanha nazi, da Itália fascista e da Finlândia, onde russos e ucranianos resistiram, lado a lado, durante 900 dias.)
A paz na Ucrânia depende da resistência heróica do povo ucraniano e também da solidariedade de todos os povos do mundo, a começar pelo povo russo, seu irmão, que se manifesta aos milhares nas cidades russas, apesar da repressão e das prisões. Muitas organizações e partidos de esquerda, incluindo comunistas, também têm sido vítimas da repressão. Putin argumenta que invadiu a Ucrânia para a desnazificar. É certo que há nazis na Ucrânia. Em Dezembro de 2012, o Parlamento Europeu lamentou, numa Resolução, para além da eleição do presidente Ianukovich (passando um atestado de menoridade aos eleitores ucranianos), o crescimento do apoio a partidos racistas e xenófobos, como o Svoboda. É sabido que as manifestações mais violentas do Euromaiden tiveram a participação dos paramilitares neofascistas do Sector Direito e do Batalhão Azov integrado no exército ucraniano apesar de relatórios da ONU o acusarem de crimes de guerra, como saques em massa, detenção ilegal, tortura e violações. São estes criminosos que têm dado treino militar a membros da extrema-direita e neonazis de todo o mundo, como já ficou provado por reportagens da Time, do Canal + e do Público. Mas a desnazificação tem de ser feita pelos ucranianos, até para poderem entrar, como pretendem, na UE (a par de medidas contra a corrupção, já que esta tem sido transversal a todos os governos, incluindo o de Zelensky, ele próprio apanhado no escândalo Pandora Papers, segundo a revista Visão de 3.03.2022); e não por Putin que também apoia grupos paramilitares da extrema-direita neonazi, como o Movimento Imperial Russo ou o Gruppa Vagnera que usou como tropa de choque no Donbass. Putin também apoia a extrema-direita mundial, de Trump e Bolsonaro a Le Pen e Salvini, passando pelo FPO da Áustria e da AFD alemã.
Ao contrário do que pensam alguns ucranianos e portugueses, Putin não quer restaurar a URSS (que já nem era socialista), mas sim o Império Czarista a que Lenin chamou “a prisão dos povos”. Mas os ucranianos não querem o regresso aos tempos da ditadura do Czar, onde a medieval servidão da gleba se prolongou até à vitória da revolução de 1917. O maior poeta ucraniano, Taras Shevchenko, também pintor, viveu metade da sua vida (no século XIX) como propriedade de um aristocrata russo (valeu-lhe um amigo artista que leiloou um quadro valioso para lhe comprar a liberdade) e antes de morrer aos 47 anos ainda foi condenado, pela tirania czarista, a dez anos de exílio por defender uma federação de estados eslavos. De certo modo este desígnio foi o que aconteceu com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (até Stálin ter retirado autonomia às repúblicas). Por isso, Putin, profundamente anti-comunista, ao negar o direito à independência da Ucrânia, acusou Lenin de ser o responsável pela sua existência.
O grande jornalista e repórter de guerra José Manuel Rosendo, recorda no seu blogue “Meu Mundo Minha Aldeia” que até Mário Soares, insuspeito de simpatia de Putin, alertou (no ano em que a NATO anunciou a intenção de integrar a Ucrânia), na Visão de 11.09.2008: “A NATO, que se tornou um verdadeiro braço armado dos EUA, está a fazer também estragos noutras regiões do mundo. Refiro-me ao Cáucaso, às zonas do Cáspio e do Mar Negro e aos países limítrofes da Rússia Ocidental. Estes quiseram logo entrar na NATO, com a ilusão de que teriam mais garantias de segurança, sob o chapéu americano, do que na UE. (…) a NATO, cercando a Rússia e instalando na Polónia e na República Checa bases de mísseis, começa a ser uma ameaça para a Rússia, que a pode tornar agressiva. Um perigo! (…)a Nato, criada como organização defensiva (…) está a tornar-se, por pressão dos neo-cons (sic)americanos, uma ameaça à paz. Cuidado União Europeia!”
Também nos EUA, vários estrategas e figuras públicas, incluindo Kissinger, em 2014, alertaram para a necessidade de apostar na “reconciliação” entre a Rússia e a Ucrânia, em vez da integração desta na NATO. Por cá, o major-general Raúl Cunha, na RTP 3, não poupou responsabilidades à NATO pela política expansionista de cerco militar à Rússia. E o major-general Agostinho Costa, na CNN, lamentou que a Europa sirva de tabuleiro de xadrez entre americanos e russos. Outro major-general, João Vieira Borges, também defende a neutralidade da Ucrânia, como imprescindível para a Paz. E no Le Soir do passado dia 8, chega-nos a voz insuspeita do sociólogo e pensador, Edgar Morin a alertar-nos para o “sonambulismo europeu”, semelhante ao que ele (que já tem 100 anos) viu antes da Segunda Guerra Mundial: “É necessário uma Ucrânia federal e neutral”.
Não por acaso, a França e a Alemanha (que apadrinharam os acordos de Minsk, violados por ambos os lados, sem que a Ucrânia desse um passo no sentido da autonomia do Donbass) foram contra a integração da Ucrânia na NATO pretendida pelos EUA desde 2008. Como é que a NATO pode garantir a paz na Europa? Já se esqueceram de quem bombardeou Belgrado provocando 140 mil mortos? Em 1990, o Parlamento Europeu condenou energicamente a NATO e os EUA, numa Resolução, por ter manipulado a política europeia através dos seus exércitos clandestinos “Stay Behind”, nascidos em 1958 e responsáveis por atentados bombistas de falsa bandeira em Itália, Bélgica e Alemanha. Só em Itália, a rede Gládio da NATO e da CIA, organizou, com a extrema-direita e a Mafia, atentados bombistas de falsa bandeira, para denegrir partidos de esquerda e impedir o “Compromisso Histórico” entre o PCI e o Partido da Democracia Cristã de Aldo Moro, que provocaram 491 mortos e 1.181 feridos, segundo a Comissão de Investigação do Senado italiano (ver a obra do multipremiado jornalista de investigação Eric Frattini, “Manipulação da Verdade – Operações de Falsa Bandeira: do incêndio do Reichstag ao golpe de Estado na Turquia”, Bertrand 2017. Título original: “Manipulando la Historia”. O golpe fascista preparado pela NATO em Itália falhou devido à denúncia de um jornalista, mas resultou na Grécia, com o Golpe dos Coronéis de 21 de Abril de 1967, financiado pelo Vaticano, segundo Frattini, que deu lugar a uma cruel ditadura que durou até Julho de 1974.
Portugal sofreu, durante 48 anos, uma ditadura cruel (a mais longa da Europa) que prolongou por 13 anos uma guerra colonial que provocou mais de 10 mil mortos, 112.205 feridos, 4 mil deficientes, só do nosso lado (perto de 100 mil mortos entre guerrilheiros e civis africanos) e a NATO, de que Portugal foi membro fundador, apesar de ser uma ditadura, apoiou Salazar e não o povo português. Devemos o 25 de Abril e a liberdade aos combatentes africanos que lutavam pela independência dos seus povos (tal como hoje os ucranianos) que resistiram e derrotaram as tropas portuguesas armadas com aviões F80 vendidos pelos EUA (e o napalm que usaram no Vietnam), helicópteros de combate vendidos pela França, aviões e espingardas metralhadoras G3 vendidas pela Alemanha-RFA que mais tarde nos deu licença para as fabricarmos.
Há que conseguir um imediato cessar-fogo na Ucrânia, a continuação das negociações no sentido da retirada das forças russas, a neutralidade da Ucrânia (que Zelensky já parece aceitar) e o reconhecimento do direito de todos os povos à auto-determinação (incluindo os de Donbass, onde em 8 anos de guerra já morreram 14 mil pessoas). Os povos têm de exigir a extinção da NATO, o desmantelamento dos arsenais nucleares e o reforço da ONU e dos seus capacetes azuis, para um mundo livre de guerras inter-imperialistas em que os povos são carne para canhão dos fabricantes de armas e dos saqueadores de riquezas alheias.
PELA PAZ NA UCRÂNIA, NA EUROPA E NO MUNDO!