Servidão Humana*1 / Despotismo pária

A invasão da Ucrânia, um país independente, reconhecido e admirado no concerto das nações, cujos cidadãos os portugueses estimam e acolhem com gosto, foi uma decisão intolerável vinda de um déspota hábil, oportunista,  pretensamente conhecedor da história e desrespeitador do direito internacional que deve comandar os destinos da humanidade*11

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  • 15:21 | Segunda-feira, 28 de Março de 2022
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Começo com duas notas pessoais: a primeira para dizer que nos últimos anos li quatro obras essenciais e volumosas sobre a Rússia: Os Romanov, vols 1 e 2 de Simon Montefiori, historiador britânico conceituado, judeu de origem sefardita portuguesa a quem Portugal concedeu o seu passaporte por este facto. Ilustres antepassado seus são referidos nesta obra. Vida e Destino de Vassilli Grossman, repórter russo na II guerra mundial, obra escrita nesse tempo numa perspetiva crítica do seu país. Quando ia ser publicado foi apreendido pelo KGB ficando desaparecido durante vinte anos. Reapareceu na Suíça graças à ação de dissidentes soviéticos em 1980, sendo publicado a primeira vez nos USA  em 1988, já o seu autor tinha morrido poucos anos após a sua primeira entrega para publicação*2. Grossman era engenheiro ucraniano e sua mãe fora vítima do extermínio nazi. As Benevolentes de Jonathan Littell, romance sobre a II guerra mundial escrito na perspetiva alemã na sua frente leste. Um novo “Guerra e Paz” segundo o Nouvel Observateur*3. Arquipélago Gulag de Aleksandr Soljenitsin, oficial do exército vermelho e comandante de divisão, que valeu a este  notável russo o Nobel da Literatura de 1970 e que não foi  autorizado a recebê-lo em Estocolmo. Há muitos anos lera já Guerra e Paz de Leon Tolstói, uma edição Minerva de 1943 a duas colunas por página com um prefácio extenso e fabuloso sobre Tolstói de João Pedro de Andrade, e Crime e Castigo de Fyodor Dostoyevsky das edições Publico.

Estes milhares de páginas construiram em mim um gigantesco apreço, admiração e um quase deslumbre pelo povo russo face à sua história, cultura e património cultural, histórico, artístico e patrimonial. A sua coragem, sofrimento, humilhação, tenacidade e capacidade de  trabalho no Arquipélago Gulag levam-nos quase ao desespero e à raiva incontidos, “que ainda hoje nos queima as mãos” no dizer acertado da editora*4.

Com iguais sentimentos nos defrontamos em Os Romanov a que se associa a incompreensível cultura nacional de submissão a um “imperador/deus” que governava e expandia o império com base em três estruturas essenciais: 1. A riqueza e a opulência da aristocracia ao lado de um sistema tirânico de servidão de 80% dos russos*5; 2. A violência e a guerra expansivas sem respeito pela soberania dos povos, a tortura e assassínio de  muitos dos seus mais próximos e muitos outros, com métodos de pura ignomínia e crueldade*6. 3. O  sexo, nalguns casos quase em versão “hard”, como instrumento de poder para dominar, manipular ou a ele ter mais e mais vantajoso acesso. Talvez um peculiar sistema de servidão*7.

Sociologicamente, parece ser esta capacidade gigantesca de sofrimento e uma submissão ao poder autocrático vinda de tempos arcaicos de “servidão” que ainda  hoje perduram na cultura e história atual da Rússia.


A Rússia foi governada até 1917 por dois impérios: o império Rurik constituído por tribos eslavas e finlandesas que foi enfraquecido pelos exércitos mongóis e permitiu o desafio e instalação dos Romanov em 1598. Estes governaram o que veio a ser um dos maiores impérios da história até 1917. O período de transição ocorreu com Ivan, o Terrível,  e seu filho Teodoro I, tendo-lhe sucedido o primeiro Romanov, Alexei Michailovich, em 1645. O último Romanov foi Nicolau II, assassinado com toda a a sua família pelos bolchevistas em 1917.

Os Romanov construiram e governaram o seu vasto império com base numa dominante principal: o seu regime de servidão. Servidão não era escravatura: a escravatura foi um “produto mercantil” importado, comprado, vendido, emprestado e até herdado com “preço por cabeça”. A escravatura nunca foi generalizada no império, tendo sido abolida por Pedro I em 1723. Os servos não eram objeto de mercado (preço) mas de submissão, quantificada, de acordo com o estatuto imperial do seu senhor*8., podendo ser vendidos com as terras onde trabalhavam. A servidão era prerrogativa apenas do Estado e da nobreza imperial e estava generalizada em todo o império no século XVIII. Os servos pagavam pesados impostos ao seu senhor em troca da sua proteção, do trabalho nas suas terras e em terras que lhe poderiam ser atribuídas individualmente.

Lendo Os Romanov somos forçados hoje a colocar uma questão pertinente: que bases humanas e sociológicas do povo russo no passado permanecem ainda hoje presentes e condicionam, ou suportam, o seu governo político, económico e social? No “diagrama” acima assinalado, cabe ou não  O Arquipélago Gulag como modelo monstruoso de servidão e “desenvolvimento económico” que subjugou em trabalho desumano 12 milhões de russos aproximadamente? Cabem ou não os atuais oligarcas da sociedade russa como instrumentos e suporte de um modelo de poder? Cabe ou não o enriquecimento ao serviço do estado como componente intrínseca e natural desse poder? cabe ou não a violência e repressão das liberdades e o “sonho/ambição” de impérios que a história já “arquivou” nos seus anais?

Entre os Romanov e os tempos atuais, aconteceu a União Soviética com o seu “corifeu” maior, Estaline: ditador cruel e sanguinário que teve o seu pronúncio na chacina dos últimos Romanov pelo episódio de  barbárie que a constituiu. Prelúdio do que a história russa já fermentava: primeiro, “uma revolução sem pelotões de fuzilamento é insignificante” afirmou Lenine. Depois o estalinismo com a violência, a perseguição e o assassinato dos opositores políticos elevados a política de Estado.

 

 

Estaline criou e impôs o Gulag e executou muitos dos melhores do seu tempo após os utilizar na sua “ambição imperial” (Molotov, chefe do governo, ministro dos assuntos estrangeiros, assinante do pacto Molotov-Ribentrop; Trotski, organizador da revolução de 1917 em Petrogrado, presidente do conselho militar revolucionário, fundador do exército vermelho; Beria, chefe do partido na Geórgia, vice primeiro ministro, ministro dos assuntos internos e tutor do projeto da bomba atómica russa, governador do  Gulag; Rikov, chefe do governo, membro do CC, presidente do conselho dos comissários do povo, ministro dos correios e telégrafos; Bukarine, teórico do partido, economista membro do CC, criador da NEP (nova política económica com base no Gulag), diretor do Izvestia; Zinóviev, presidente do soviete de Petrogrado, Iágoda, diretor da polícia do Estado, ministro dos  assuntos internos; Kirov, membro do CC, construtor do canal Báltico-Mar do Norte e do Campo Especial de Solovki ). Todos foram executados exceto Molotov que foi expulso do partido. Depois vieram as invasões da Hungria em novembro de 1956, da Checoslováquia em agosto de 1968 e a tentativa da sua repetição na Polónia*9.

 

O que aconteceu passado menos de um século está agora à vista na Ucrânia perante o espanto e receio do mundo livre e democrático. Com duas diferenças: parte do povo russo está de pé e contra essa invasão. Que paga, como já outros o fizeram no passado, com a prisão essa expressão de liberdade*10. Depois, a globalização, o luxo  e a sua ostentação mundial parecem fazer pensar os detentores da riqueza que pertence ao povo russo.

A invasão da Ucrânia, um país independente, reconhecido e admirado no concerto das nações, cujos cidadãos os portugueses estimam e acolhem com gosto, foi uma decisão intolerável vinda de um déspota hábil, oportunista,  pretensamente conhecedor da história e desrespeitador do direito internacional que deve comandar os destinos da humanidade*11

Conclusão: Em termos da sociologia profunda dos povos, não será fácil e rápida a chegada da liberdade  vinda de “séculos de servidão”*12 e a entrada na idade adulta do progresso humano, livre e democrático. Mas, entre o “fervor religioso” por um czar/deus ou por um autocrata feroz, pária e violento e a ânsia profundamente humana da liberdade, não houve nunca barreiras inultrapassáveis ao longo da história. A história o afirma e o continuará fazendo.

 

1. W. Somerset Maughan, 1915, “Servidão Humana”. Considerada uma das obras mais relevantes da literatura universal do século XX. A comparação com este texto é apenas semântica.

*2. Vida e Destino: “Víktor Pavlovitch, peço-lhe, todo nós lhe pedimos, escreva uma carta, arrependa-se, acredite que isso o vai ajudar. Pense nisto: numa altura em que tem pela frente um trabalho enorme, modéstia à parte um grande trabalho, quando as forças vivas da nossa ciência olham para si com esperança, vai tudo por água abaixo, assim de repente. Escreva uma carta, reconheça os seus erros. De que devo arrepender-me, quais erros? Ah, que diferença é que isso faz? Toda a gente faz isso: na literatura, na ciência, até na sua música de eleição, Chostakóvitch reconheceu os seus erros. Os comunistas alemães que metemos no campo de concentração também foram encarcerados por vós nos anos 37. Ejov encarcerou-os, o Reichsführer Himler também. Hoje assusta-vos o nosso ódio aos judeus. Mas,  se calhar, amanhã ireis adotar a nossa experiência. O vosso terror matou milhões de pessoas, mas apenas nós, os alemães, únicos em todo o mundo, compreendemos isso: era preciso! Estava certo. …não, não, mais ainda! É preciso censurar Lenine. Acha que hoje olham para nós com  terror e para vocês com amor e esperança? Acredite que não: quem olha com terror para nós, olha para vós com o mesmo terror”.

*3. As Benevolentes: “Setenta ou oitenta por cento dos povos da URSS são de origem mongol. Está provado. E os bolcheviques conduziram uma política deliberada de mistura racial. Lutávamos contra  autênticos mugiques russos, mas os bolchevistas exterminaram-nos a todos. Já quase não restam verdadeiros russos, verdadeiros eslavos. Mas, quando conquistámos a Polónia herdámos três milhões de judeus suplementares. Ninguém sabe o que fazer com eles ou onde os meter. Desde março que a empresa de Goebels não parava de insistir na descoberta na Bielorrússia de cadáveres polacos, milhares de oficiais assassinados pelos bolchevistas depois de 1939”.

*4. A. Gulag: “E ninguém estremeceu entre os procuradores do partido que condenavam as crianças a 3, 5, 8 e 10 anos. Por uma colher de espigas davam àqueles miúdos não menos de 8 anos. E por uma algibeira de batatas nos calções de uma criança também 8 anos. Era impossível fazer entrar de maneira mais sólida e mais rápida todos os vícios do Campo num peito ainda frágil e não desenvolvido. Desviaram vinte gerações para o crime e o deboche”.

*5. Os Romanov: “Orlov, o primeiro amante de Catarina, a Grande, recebeu uma pensão anual de 150.000 rublos,10.000 rublos para montar a sua casa, o Palácio de Mármore, e 10.000 servos. Menshikov, bombardeou Catarina com exigências de dinheiro, almas e títulos. Em pouco tempo tornou-se dono de 300.000 servos. Em 1700, o príncipe Mikhail Cherkassy possuía apenas 33.000.No dia 15 de julho de 1786, o “Negro Branco” (ex amante de Catarina) foi-se embora de vez com 4.000 almas e 130.000 rublos. Mamonov tornou-se rapidamente conde, proprietário de 27.000 servos. Paulo e Maria foram contemplados com um novo beija mão de joelhos e um total de 82.000 “almas”. Rumiantsev recebeu 5.000  ”almas”e 100.000 rublos. Platon Zubov era culto e tinha boa memória, mas totalmente negligente e incapaz. No entanto, o peralvilho era chefe de tudo. Foi elevado a conde e encarregado de organizar a segunda partilha da Polónia. Vou ficar com a Úcrania, disse Catarina, para compensar as minhas despesas e perda de gente. A Prússia recebeu o seu quinhão”. Foi Alexandre II que, em 18 e fevereiro de 1821, aboliu o regime de servidão tornando libertos 22 milhões de servos russos.

*6. Os Romanov: Ele sabia:”Chamam-me um governante selvagem e tirano. A compulsão é absolutamente necessária no nosso país. No dia 14 de março de 1718, o bispo e três criados foram quebrados com martelos e deixados a morrer na roda. Duas nobres, incluindo uma das damas de Catarina, a princesa Anastasia Golitsyna foram chicoteadas. Glebov, o amante de Eudoxia (primeira mulher de Pedro, o Grande), foi flagelado com um cnute (chicote), queimado com ferros em brasa e pregado a uma prancha com espigões onde permaneceu dois dias. Kikin foi quebrado na roda. Lopukhin foi executado. No dia 9 de dezembro, o confessor e os criados de Alexei foram decapitados; a outros, arrancaram-lhes a língua ou cortaram-lhe as narinas. Volynsky foi considerado culpado: foi poupado ao empalamento, mas cortaram-lhe a língua e depois de ser amordaçado, deceparam-lhe a mão direita e a cabeça. O general Panin dizimou aldeias, pendurou milhares de rebeldes pelas costelas e construiu forcas flutuantes que enviou Volga abaixo”.

*7. Os Romanov: “No outono de 1718, Pedro iniciou uma investigação sobre uma das damas de honor de Catarina e sua ex amante: Mary Hamilton. Muito viciada conseguiu engravidar três vezes com o amante Ivan Orlov. Foi detida e torturada na presença de Pedro e confessou que tinha assassinado três bebés. Frederico o Grande, da Prússia, especialista nas questões da Rússia, observou que:”Orlov desempenhava todos os deveres “exceto f… É terrível quando o c… e a c… decidem os destinos da Europa”. Pedro passava da jovialidade à ameaça num ápice. Era tolerante em reação ao cadastro sexual das suas amantes. No entanto, o seu companheiro inseparável não era Ana, mas sim “Sacha” Menshikov que se tornou o seu favorito entre os cortesãos que dormiam aos pés da cama ou à porta do quarto do czar. Catarina começou a ensinar a Potemkin o teatro da política, gabando-se de o ter criado de sargento a marechal. Potemkin vivia com ela dia e noite. Mas ela, Catarina, era demasiado exigente e carente. Admitiu que tinha tido quatro amantes antes dele. O meu problema é que o meu coração não consegue estar uma hora sem amor. Catarina apaixonou-se pelo “galarote machão, major sérvio de 30 anos”. O príncipe de Ligne descreveu o seu reinado como “uma ereção permanente”. O centro da vida de Catarina foi sempre o amante em funções. Longe de ser ninfomaníaca, ela foi uma monógama em série convicta. Catarina e Zavadovski apaixonaram-se durante a redação dos documentos. Catarina já tinha encontrado um substituto, Platon Zubov, um alferes da guarda de 22 anos a que chamou “pretinho”.

*8. Os Romanov: “A riqueza passou a ser medida não em hectares mas em “almas”. Catarina não se coibiu de oferecer centenas de milhares de “almas” aos seus favoritos. De facto, milhões de servos tornaram-na a maior proprietária do império pela posse de milhões de “coisas” humanas”.

*9. João Paulo II enviou a L.Brejnev o arcebispo Paulo Marcinkus, presidente do Banco do Vaticano, com uma carta para o informar que iria para as barricadas na Polónia caso ele se “atrevesse” a invadir o seu país. Foi também este arcebispo o portador de verbas avultadas idas do Vaticano e que “aguentaram” as prolongadas greves do Solidariedade em Gdansk.“O Pontífice”, Gordon Thomas, Editorial Noticias, coleção Sinal dos Tempos.

*10. A. Gulag: Soljenitsin questionou-se, também a si próprio: como era possível o Gulag, sem que milhões de russos se levantassem em revolta contra ele? Talvez por isso, relata em pormenor os poucos casos de fugas mais ou menos organizadas que aí ocorreram.

*11. Os Romanov: Talvez Putin tenha herdado do berço as sementes da tirania e da violência: “seu avô, Spiridon Putin, foi o cozinheiro privado de Rasputine, Lenine e Staline.

*12. Os Romanov: “Pedro, o Grande, era um tirano que governava essencialmente por intermédio de um pequeno círculo de parentes ligado às mulheres do avô e do pai”.  Imperatriz Alexandra para Nicolau II a 13 de dezembro de 1916: “Sê firme… os russos gostam de sentir o chicote – é a natureza deles. Sê Pedro, o Grande, Ivan, o Terrível, o Imperador Paulo – esmaga-os a todos”.

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