A afirmação, muitas vezes assumida por comentadores e políticos, de que vivemos um tempo único de polarização e de radicalismo, faz pouco sentido. Tais considerações esbarram na leitura histórica e demonstram uma outra coisa: o progressivo desconhecimento da nossa vida coletiva do último meio século.
Os períodos de maior radicalização verificaram-se entre 1973 e 1982 e entre 1985 e 1987. Coincidem com a constatação pública da podridão do marcelismo, o processo revolucionário, as duas maiorias de direita em 1979 e 1980 e a revisão constitucional de 1982; e com a eleição de Mário Soares como Presidente da República e a primeira maioria de Cavaco Silva.
A derrota do modelo comunista, em 1975, fez com que Álvaro Cunhal, sem deixar de alinhar em permanência com a União Soviética, se conformasse com jogo da democracia burguesa. A confirmação do PCP como grande partido autárquico, logo em 1976, a institucionalização do movimento sindical e a aceitação dos comunistas como força essencial à reeleição de Ramalho Eanes, que haveria de levar à chamada do seu líder ao Conselho de Estado, transformaram muito este universo da esquerda leninista que não jogava bem no campo das democracias de tipo ocidental.
A extrema-esquerda, não a esquerda radical na definição de André Freire, que era protagonizada pela UDP, tinha espaço parlamentar no início e regrediu na década de 1980. Nessa altura ainda havia terrorismo protagonizado pelas FP 25, circunstância semelhante à da direita no período revolucionário mas que já tinha desaparecido, ainda nos finais da década de 1970, com a extinção do MDLP e com a integração dos integralistas, dos ruralistas e dos duros do regime do Estado Novo no projeto da AD.
A posterior agregação da UDP e do PSR, com a criação do BE, temperou também da extrema-esquerda e aburguesou o seu discurso e a sua ação política. A esquerda caviar nasce quando se extingue a direita de meia branca típica do cavaquismo. Em boa verdade e confirmando Freire, não temos em Portugal uma esquerda radical e, se ainda havia dúvidas disso, elas esgotaram-se com a solução política nascida em 2015. Desde o início da década de 1980 que a tal direita nacionalista e ultramontana se integrou quase em definitivo no CDS e no PSD. O primarismo destes partidos na visão das políticas de igualdade é bem o exemplo disso, como sempre foi a dualidade com que as famílias conservadoras vivam, e vivem, os vícios privados e as públicas virtudes.
A despedida do PSD do espaço liberal, a sua integração no espaço da direita dura europeia, as políticas de desgraduação do papel do Estado, a canibalização dos bens públicos e a negação da regulação, consolidaram a direita portuguesa, toda a direita num projeto e numa visão comuns. Não foram Sá Carneiro ou Cavaco Silva, ganhadores com maioria absoluta, os grandes líderes da direita unida. Esse líder foi e é, ainda, Passos Coelho.
Por isso se tornou tão anacrónica a eleição de Rui Rio como presidente do PPD/PSD. Ele, para além de não ter consistência política, assume uma leitura de guarda-livros na economia, é, sob ponto de vista social, como dizia Vasco Pulido Valente, um reitor do Liceu de Resende em 1963.
Alguns politólogos consagram o Chega como um partido. Ainda não é e vamos ver se chegará a ser. Ao contrário dos movimentos partidários ultranacionalistas italiano, francês ou espanhol, o Chega é só, e por agora, uma aliança entre um protagonista inteligente, pragmático e ardiloso e um ideólogo todo-terreno que atravessou, por dentro, as últimas seis décadas das elites portuguesas de direita. A vigilância dos democratas perante a evolução de movimentos anti-sistema não passa por lhes permitir o estatuto de vítima e lhes ganhar em luta na lama. Passa, isso sim, por se resolver cada problema que incomoda a maioria da população portuguesa. A boa governação, a transparência no desempenho público, a clareza da decisão e do debate são determinantes para impedir o avanço dos populismos trauliteiros.
Em terceira edição, a direita reúne-se nos seus Estados Gerais. Estão lá todos os que interessam. Mas, como diz Pacheco Pereira, ninguém entende por que está Rui Rio.
A irritação de uma certa esquerda esquizofrénica veio a propósito da participação de Sérgio Sousa Pinto num painel dessa cimeira passista. Para mim, Sousa Pinto fez bem ao ter aceitado o convite. Mário Soares viveu uma vida em alianças e atenções improváveis. Primeiro com comunistas e tradicionalistas “anti-botas” nas campanhas de Norton de Matos e Humberto Delgado, depois com a Igreja Católica nos anos quentes do gonçalvismo, com o CDS em 1977 e 1978, com a direita na revisão constitucional de 1982, com todos enquanto presidente-rei ao longo da década de Belém, com o frentismo anti-PS em Portugal, que Futuro?, já com quase toda esquerda na luta contra a invasão do Iraque e, depois, contra a política austeritária.
Não dou relevo a outras participações de personalidades que habitaram o espaço do PS em tempos, mas a participação de Sousa Pinto deve ser elogiada.
O argumento da normalização do Chega é patético. Nas democracias liberais o debate é imposto pela representação parlamentar. Este partido está no parlamento e todos os outros são implicados por ele. Ora, que patetice é esta, que nos querem impor, ao separarem a vida parlamentar da vida cívica? Todo este contencioso é acompanhado da “privatização” do 25 de abril. Ao longo de quatro décadas houve uma separação entre abrilistas e novembristas que radicalizou o panorama político-partidário. Até elegeram Jaime Neves como ideólogo e, com uma tesoura estalinista, cortaram das fotografias Vasco Lourenço. Tudo aconteceu antes do Chega arribar.
Saibamos entender Sousa Pinto no trabalho de não sangramento da democracia, preparemos abril de 2024 com um país unido numa data única.
(Foto DR)