Precisamos de pessoas sem amarras
Já sabíamos que as várias estórias em torno do BES/GES estavam todas, sem exceção, mal contadas e que a única coisa que tínhamos por certo é que nada era transparente. Também já sabíamos que o todo-poderoso Ricardo Salgado tinha sido constituído arguido por burla, abuso de confiança, falsificação e branqueamento de capitais, conseguindo implodir um […]
Já sabíamos que as várias estórias em torno do BES/GES estavam todas, sem exceção, mal contadas e que a única coisa que tínhamos por certo é que nada era transparente. Também já sabíamos que o todo-poderoso Ricardo Salgado tinha sido constituído arguido por burla, abuso de confiança, falsificação e branqueamento de capitais, conseguindo implodir um grupo financeiro com mais de 150 anos. Também já sabíamos que o BES tinha um representante em todo o lado, desde as empresas públicas (incluindo na concorrente CGD), cujos CEO iam despachar em dia fixo na sede do BES, aos organismos estatais e até aos vários governos. Era dessa realidade que resultava o título de dono disto tudo (DDT) que Ricardo Salgado gostava de ostentar. Já sabíamos de Angola, da ocultação dos passivos do GES e de muitas outras fraudes gigantescas elaboradas por mentes perversas e amorais que viram a sua vida facilitada por autoridades que não vigiam, não supervisionam e não atuam.
O que eu pessoalmente não sabia é que é possível toda esta evidência e as pessoas andam livremente pelo país, são ouvidas no parlamento, preparam com milhões defesas mirabolantes gozando de uma liberdade que a mim me ofende e me deixa perplexo.
O Ricardo Salgado fez uma intervenção na Assembleia da República que é um hino à hipocrisia, elaborando uma narrativa competente, que tudo analisa e tudo explica, atribuindo à crise, à troika, ao Governo, à política, aos inimigos, etc., toda a responsabilidade pelo descalabro que se abateu no BES/GES. No entanto sem nunca reconhecer algum tipo de culpa a ele próprio, dono e senhor do grupo: “O BES não faliu: foi forçado a desaparecer”.
Há passagens desta longa audição que são verdadeiramente elucidativas. Retive a resposta de Ricardo Salgado sobre o paradeiro do famoso contabilista, Machado da Cruz, a quem Ricardo Salgado atribui toda a culpa da ocultação de passivos do GES, atitude que, segundo o mesmo Ricardo Salgado, o deixou “muito admirado” pois o contabilista era “um homem muito considerado dentro do grupo”. E acrescentou, qual padrinho habituado à ideia de fazer desaparecer pessoas, a seguinte declaração: “Machado da Cruz vivia uma parte na Suíça, outra parte nos EUA. Não o vejo há muito tempo. Não fui eu que o fiz desaparecer”.
Depois de ouvir a Ministra das Finanças, o Governador do Banco de Portugal, o Ricardo Salgado, o primo José Maria, o PQP (são as iniciais de um nome e não de um palavrão que na verdade também me apetece dizer), o Morais Pires, etc., a contar as suas narrativas perante uma comissão de deputados, entretidos a fazer perguntas ingénuas e a ouvir estórias da carochinha como a das irmãs donas disto tudo que fazem bolos à noite para vender a restaurantes (imagino para saberem como é a vida dos pobrezinhos), fico abismado com a enorme quantidade de versões apresentadas por toda esta gente sobre os mesmos factos. Estamos no reino da infâmia e da mentira sem pudor na casa da democracia, e sem o devido, competente e livre contraditório: na audição a Ricardo Salgado este chegou a afirmar que “estamos a chegar a um ponto em que os senhores deputados estão a entender o que aconteceu”, depois da intervenção de um deputado socialista. E assalta-me (palavra bem escolhida) a certeza de que há gente cheia de massa que perdeu MUITA MASSA nesta fraude do BES/GES. E essa gente está muito aborrecida e vai fazer a vida negra aos seus ódios de estimação. Será uma fogueira de virtudes, de reputações e de currículo, com tiros em todas as direções. O meu desejo é que ninguém fique de pé, libertando este país da gangrena a que o condenaram. Precisamos de pessoas sem amarras.