Por um governo de esquerda sem o absolutismo hegemónico do PS

No Orçamento para 2021, seria o BE a votar contra e o PCP a abster-se. Costa passou então a bajular a “lealdade” do PCP, enquanto ia aumentando a tensão com o BE. Calculou que teria o PCP no bolso, mas o partido que este ano comemora cem anos de vida e de luta não se vendeu por um prato de lentilhas.

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  • 18:58 | Sexta-feira, 03 de Dezembro de 2021
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Em 2015 os portugueses estavam fartos do governo do PSD/CDS que foi mais austeritário do que a Troika.

Face à disponibilidade do PCP e do BE para uma maioria parlamentar que sustentasse um governo do PS, surgiu o que a direita apelidou, depreciativamente, de “geringonça”, augurando-lhe uma vida curta.

Afinal, a “geringonça” foi, como lembrou o ministro Pedro Nuno Santos, a solução governativa que mais durou, a seguir aos governos de Cavaco. Bastou um acordo entre os partidos de esquerda para a recuperação de direitos de quem foi mais sacrificado pela crise.


Mas em 2019 António Costa recusou um acordo escrito proposto pelo Bloco para, na nova legislatura, aumentar o poder de compra dos mais desfavorecidos, recuperar direitos laborais e melhorar os serviços públicos, a começar pelo SNS – Serviço Nacional de Saúde. O PS optou por negociações meramente pontuais com os partidos que lhe deram maioria parlamentar. Resultado: o PS votou mais vezes ao lado do PSD, CDS e IL do que com os partidos de esquerda. Houve compromissos com a esquerda que nunca foram cumpridos.

Em 2020 o BE até se absteve no Orçamento Suplementar (conseguindo alguns avanços, como o governo deixar de apoiar empresas sediadas em paraísos fiscais), apesar de reconhecer uma convergência entre PS e PSD na especialidade, contra direitos dos trabalhadores, o que mereceu o voto contra do PCP na votação final.

No Orçamento para 2021, seria o BE a votar contra e o PCP a abster-se. Costa passou então a bajular a “lealdade” do PCP, enquanto ia aumentando a tensão com o BE. Calculou que teria o PCP no bolso, mas o partido que este ano comemora cem anos de vida e de luta não se vendeu por um prato de lentilhas.

E, em Outubro deste ano, PCP e BE votaram lado a lado contra um Orçamento que não eliminava leis laborais da Troika e da direita, não recuperava direitos, como a reposição das indemnizações por despedimento, nem prevenia a degradação do SNS. Notícias recentes tornam mais do que evidente que o BE tinha razão em exigir o reforço do SNS: faltam 365 profissionais de saúde só no IPO de Lisboa; ficaram por diagnosticar mais de 4.400 cancros durante a pandemia; 14 milhões de consultas por fazer nos centros de saúde; 10 chefes de Cirurgia demitiram-se no Hospital de Santa Maria.

António Costa disfarça mal a sua estratégia maquiavélica de arriscar tudo em eleições antecipadas, contando com as fragilidades no PSD e CDS que lhe poderiam dar maioria absoluta e assim livrar-se dos incómodos aliados do PCP e do BE que classificou, em 2019, como “empecilhos”.

Talvez esteja a sonhar mais alto, com a presidência da Comissão Europeia, como aconteceu ao Barroso de má memória, e queira provar aos líderes europeus que isso de se aliar a partidos radicais não voltará a acontecer.

Não deixa de ser significativo ter dito, na última entrevista televisiva, que não fecha a porta a ninguém, nem à esquerda nem à direita, quando ainda há pouco negava a possibilidade de um “bloco central”.

Não sei se Costa leu “O Príncipe”, escrito no século XV por Maquiavel, que não trata da melhor forma de governo, mas antes da arte de manter um Estado duradouro, um manual político para déspotas e “condottieri” que guiou Napoleão Bonaparte na sua desmedida ambição de poder absoluto e global; mas, de qualquer modo, seria útil recordar-lhe que os príncipes também caiem do cavalo.

As quatro últimas sondagens, todas posteriores ao chumbo do Orçamento de Estado 2022, mostram que os portugueses não querem correr o risco de dar ao PS uma maioria absoluta. Com excepção da sondagem SIC-Expresso (ICT e ISCTE) que augura uma queda de 4 pontos para o BE, as outras três – JN, DN e TSF (Aximage); Público, Antena 1 e RTP (Univ. Católica); Correio da Manhã e Jornal de Negócios (Intercampus) – apontam para a manutenção do Bloco de Esquerda como terceiro partido nacional. Também o PCP não sofre grande erosão do seu eleitorado, disputando o quarto lugar com o CH e o IL.

Portugal precisa, mais do que uma instável “geringonça”, de uma esquerda forte e plural que dispute o terreno do poder aos interesses instalados, reforce a alternativa a maiorias absolutas e à promiscuidade do “bloco central” e não dê o flanco à mixórdia de uma direita unida à extrema-direita racista e xenófoba, apoiada por salazaristas e neonazis.

Ou seja, só há um futuro sustentável, social, ambiental e economicamente, com um governo em que a esquerda não seja um mero cravo na lapela para a fotografia.

 

(Cartoon de Carlos Vieira)

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Publicado em Opinião