Os desvairados

O desprezo ideológico pelo estrangeiro tinha um avesso espetacular: a pilhagem de obras de arte e objetos de luxo na Europa e a sua incorporação nas mansões dos políticos e militares. A casa do general Zhukov era um museu, com tantos quadros que alguns ornavam as paredes da cozinha e um, com duas mulheres nuas, estava no tecto do seu quarto, sobre a cama.

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  • 17:11 | Quarta-feira, 08 de Setembro de 2021
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Durante a guerra, Estaline não tivera tempo de vigiar a literatura, as artes plásticas e a música da União Soviética. Depois, com Zhdanov ao, resolveu erradicar os estrangeirismos, deter a degenerescência, corrigir os costumes, atacar, enfim, o modernismo, o formalismo e o cosmopolitismo. A ofensiva cultural foi lançada em 18 de Abril de 1946. Os jornais vacilaram com o que haviam publicado e agora se tornara inaceitável. Chostakovitch tremeu: as suas peças pareciam um erro perigoso. Recebeu de Zhdanov uma lição sobre a música que devia compor. Os actores, antes orgulhosos dos sucessos em Paris, sentiram que isso os comprometia. «Esses franceses, não valem a sola dos nossos sapatos», terá dito Estaline. «Não há nada mais importante do que o teatro russo.»

Os artistas menores eram premiados por cumprirem o receituário ideológico. O ditador dava lições de história, de estética e até de moral. Eisenstein foi acusado de filmar um Ivan, o Terrível, demasiado terrível. «Pode mostrar que ele era cruel – disse-lhe Estaline. – Mas tem de mostrar por que razão ele tinha de ser cruel.» Também lamentou que, no filme de Eisenstein, Ivan beijasse a mulher tempo demais. Simon Sebag Montefiore, que biografou o «czar vermelho» a partir da corte que o rodeou, escreve que Estaline sorriu a Eisenstein: «Não estou a dar-lhe instruções, estou apenas a fazer-lhe os comentários de um espectador.»

O desprezo ideológico pelo estrangeiro tinha um avesso espetacular: a pilhagem de obras de arte e objetos de luxo na Europa e a sua incorporação nas mansões dos políticos e militares. A casa do general Zhukov era um museu, com tantos quadros que alguns ornavam as paredes da cozinha e um, com duas mulheres nuas, estava no tecto do seu quarto, sobre a cama. O roubo sistemático, que tão facilmente se associa a Goring, aplica-se, e até com mais proveito, aos líderes da União Soviética. Os bolcheviques, tão puros, passeavam-se em carros desportivos italianos, guardavam grandes quantidades de roupa interior feminina, enviavam para o Gulag as mulheres que não se deixavam seduzir, surripiavam porcelanas, relógios e pianos e amorteciam os passos em tapetes persas. As esposas folheavam a Harper’s Magazine e a Vogue. E tudo Estaline supervisionava. Aliás, ofereceu a Zhdanov dois automóveis Packard, um dos quais blindado. Simon Sebag Montefiore fala de um padrão de «corrupção, deboche e leviandade».

Se Mahatma Gandhi tivesse conhecido este mundo sinistro, poderia ter continuado a dizer as suas frases perfeitas? Quatro dias antes da ofensiva de repressão cultural desencadeada por Zhdanov e Estaline, o jornal Harijan publicou uma entrevista na qual Ghandi afirmava: «Aquele que procura realmente a verdade nunca deve partir do pressuposto de que as opiniões do seu adversário não são dignas de confiança.» E se for inimigo? E se o inimigo estiver tomado pelo desvairamento do mal, do poder ou do luxo?


 

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Publicado em Opinião