Nada aferrado a andar a pé, de mal com o automóvel, fiz-me a Lisboa e ao Porto, no último mês, viajando de autocarro e comboio. A horas decentes, sem levantares madrugadores, que me dão cabo das tensões e dos rituais, que só a muito custo dispenso. Mordomias, que me levarão para a cova, teimoso que ando nos meus hábitos.
Os habitáculos são espaçosos, confortáveis, climatizados. Os vidros filtram o sol que batendo de chapa incomoda. Há sacos do lixo para quem se descuida dos consumos alimentares, casas de banho com asseio. Os bancos têm a possibilidade de carregamento dos equipamentos tecnológicos, uma necessidade das mulheres e dos homens modernos, que cultivam uma necessidade doentia de contacto permanente, ainda que à distância. E são pontuais, muito pouco se afastando dos horários previstos.
Enquanto viajava, lembrei-me dos tempos em que, com bilhete nas carreiras do “Novo Mundo” ou do “Coche da Beira”, só seis horas depois, e sem morrerem ou se sentirem indispostos, os meus pais sabiam do meu paradeiro, se nesse intervalo eu tinha enjoado, adormecido ou emigrado.
Dei por bem empregue o tempo que gastei, poupando nas economias e investindo no descanso e na tranquilidade. Chegámos ao destino, num abrir e fechar olhos, fresquinhos que nem uma alface da horta do vizinho.
O que estraga um pouco o ambiente é o “tuga” estouvado, alérgico a companhias civilizadas, que resolve esticar as pernas e pousar as patas no banco do lado, livre de passageiros;
a mulher com os calores da menopausa, num abanico desvairado, as mãos fazendo de leque;
os ais de amores que uma adolescente soletra;
os vapores que exalam do contribuinte habituado ao banhinho mensal;
a peúga branca, com as olímpicas raquetes de ténis, a denunciar o chulé de dias;
os maus modos do casal, que resolve trazer para a praça pública posições e prazeres de uma noite de deleites;
a unhaca do mindinho que zelosa e proficientemente esgravata as narinas;
a família numerosa que arrasta a prole ranhosa e ramelosa, num choro irritante;
o ronco do noctívago, que aproveita a viagem para pôr o sono em dia;
o mal casado que, por baixo dos óculos escuros, escrutina quem por artes mágicas supõe livre e disponível para engates de ocasião.
Entre os centros urbanos já é possível a circulação, num rápido, sem atrasos e desconfortos, dispensando o automóvel, vício que já não comandamos, objecto de estimação, com direito a quartinho nos anexos.
Pena é que políticos pouco avisados, num assomo de modernismo pacóvio, tenham, outrora, privado o país da ferrovia, que nos levava aos lugares mais recônditos. Reduzindo o progresso ao cimento e ao alcatrão – com auto-estradas a mais, sem fluxo de tráfego conveniente – não descansaram enquanto não deram cabo do que valia a pena, e era muito.
Soprados pelos ventos de uma Europa que definha, não se endireita e nem se afirma, fomos atrás do que nos impuseram, destruindo o que nos valorizava.
Depois de termos acabado com ele – um crime sem responsáveis – voltámos a colocar os carris, sonsos e serenos, como se não tivéssemos pecado.
Fazendo festança e largando foguetório, passando uma esponja sobre os erros monumentais do passado recente, os nossos dirigentes troçam de nós e da nossa memória, como se possível esquecermo-nos das falhas grosseiras.
Com o fim das camionetas da carreira, dos comboios, vieram os automóveis, as auto-estradas, que se pagam e repagam, enchendo os cofres das concessionárias, os engarrafamentos, a subida do preço dos combustíveis, a poluição.
Num território tão pequeno, não seria difícil termos tudo arranjadinho e a servir as nossas necessidades. Mas inventámos, e quando nos dá para as enzonices, normalmente esbardalhamo-nos.
Já é cisma este país não ter tino nem rumo. Fado e desilusão. Destino. Pode ser tudo isso, mas também é azar, defeito de fabrico, falta de peças.
Houvesse concurso público para estadistas, o mais certo seria que os concorrentes não reunissem os requisitos mínimos