Há um sortido muito bem recheado. Não falta por onde escolher. Mais parece uma banca de fruta do Mercado do Bolhão, em dia de farta freguesia. Porém, saber-se que a quantidade não é sinónimo de qualidade, intranquiliza-nos.
A um ano de distância, a medo, vão-se chegando à frente, não vá a memória esquecer-se deles, apagá-los do presente e riscá-los do futuro. Acotovelam-se nos corredores, coçam-se nos espaldares, fazem-se desentendidos, adiam decisões, desculpam-se com as famílias, ainda é cedo, para o ano é que é. Xingam da nossa confiança.
Entretanto, discretamente, promovem jantares, encomendam sondagens, juntam amigos, avaliam apoios, testam opiniões. Vão aparecendo, fazem-se convidados, atentos aos comentadores. Os putativos candidatos à presidência da República. Da esquerda à direita, são muitos.
A maioria é para queimar, sucumbindo, no percurso, às rivalidades e invejas partidárias, à moleza dos apoios, à escassez de correligionários, às querelas, às polémicas, aos interesses. Quando for a valer, na grelha de partida, destes restarão poucos, talvez dois, três, e nem todos de boa fazenda.
A direita trará os mesmos de sempre. O internacional Durão Barroso, o travesso Santana Lopes – “eu sou capaz de ganhar ao almirante”- , o sisudo Passos Coelho, o irrequieto Marques Mendes, o bulhento Ventura. Com o submarino Portas não insistam muito, que ele ajeita-se logo à terceira vez, fingindo contrariedade e sacrifício.
A esquerda, autofágica e orgulhosa, haverá de se dividir, seguindo a costumeira e rançosa conveniência dos feitores, negligenciando o interesse nacional.
O resguardado Seguro, o quezilento Santos Silva, o contabilista Centeno, o negociador Vitorino, a rabina Ana Gomes, mais os coelhos que sairão das cartolas do PCP, conservador e previsível, e do BE, fracturante e arriscado.
De todos, temos razões de queixa e/ou simpatias. Conhecemo-los, vimo-los em trincheiras diferentes, acompanhámos o seu percurso partidário. Têm caderneta que os habilita. Em convergências ou divergências, encontrámo-nos por aí, criticando ou apoiando. Da semelhança e da diferença, se fez o respeito. Mas há um, de quem não se conhece o pensamento político, o que defende, o que rejeita, o que propõe. Nada! Um ai, um gemido, um soluço, um zumbido. Sobre questões importantes, e são tantas, não se sabe, e ainda menos se imagina, o que Gouveia e Melo nos traz e tem para nos oferecer. Sobre elas, e que muito nos afligem, tanto podia ter já escrito. Ninguém o impedia. A lei que invoca para o seu resguardo é um álibi conveniente e oportuno, mas frágil. Fica então um silêncio preocupante, que conduz ao desconhecimento dos eleitores. Um vazio perigoso, que não abona a seu favor.
Depois de já ter anunciado ao Conselho do Almirantado e a Nuno Melo, com quem partilhou confidências, degustando um bitoque com ovo a cavalo, molhado com uma imperial bem fresquinha, a sua indisponibilidade para mais dois anos na chefia do Estado-Maior da Armada, insiste na dúvida.
Porém, há detalhes, pegadas que resistem ao vento do deserto e denunciam o almirante de olho azulado, sempre vestido com um ar marcial, que cultiva com estranho esmero, quiçá um devaneio, uma saudade de amores inconfessáveis.
Atrevamo-nos, pois, a essa descoberta, garimpando, num percurso nem sempre suave e pacífico.
1. “Se a Europa for atacada e a NATO nos exigir, vamos morrer onde tivermos de morrer para a defender.” – Foi um pouco assim, em 1961, com a invasão da Índia portuguesa pela União Indiana e o sacrifício estúpido pedido a Vassalo e Silva, com Salazar a admoestar com ignomínias ácidas: “Sinto que apenas pode haver soldados e marinheiros vitoriosos e mortos.” Glória ou morte, ideia patriótica, com o generalato e o almirantado em resguardo, nos bem assoalhados gabinetes da estratégia.
2. “Uma mente desocupada é uma oficina do diabo.” – Trabalhar o tempo todo. Trazer pão para a família. Cabeça leve para exercitar e pensar? Não! Alguém pensará por nós. Os eleitos, os superlativos, os ungidos e abençoados. Talvez reminiscências de uma visão do mundo e da natureza humana que atribui ao ócio uma ameaça à moral e à ordem. E alguma indisfarçada soberba.
3. “Se isso acontecer, dêem-me uma corda para me enforcar”, respondeu Gouveia ao jornalista, em 2021, sobre uma hipotética entrada na vida política. E num arrebitado vislumbre iluminado, que, para mal de todos nós, logo feneceu, acrescentou: “a democracia não precisa de militares.” – Pois enforque-se, senhor almirante, esteja à sua vontade. E que o baraço não lhe atrapalhe o querer. Porque não é original, o almirante é sempre pior do que as cópias, imita os políticos “tupperware” que descartam ideias como quem se desfaz do bife de vaca, não precisando de óleo para escorregar, tropeçando nos seus próprios dizeres. Que confiança pode inspirar quem, com a sua idade e experiência, diz e desdiz, afirma uma coisa e o seu contrário? Muito pouca. Dá ares de instável, inseguro, incoerente.
4. Em Setembro de 2023, respondendo a Filomena Cautela, insistiu na narrativa. A jornalista promete que não lhe vai perguntar se vai ser candidato a presidente, mas, ao fechar a entrevista, no seu jeito irreverente, “disparou”: “Mas vai (candidatar-se)?” E o almirante, já de pé, nublando a fé com o gesto, fincou-se na cisma: “Não, não vou.” De um político quase tudo se espera, mas no almirante, ainda com o cabaço nas lides políticas, estranha-se. Talvez a vertigem, apanhando-o ansioso e demasiado desocupado, o tenha tomado nos seus braços macios e embalado com a sua voz melodiosa.
5. “Havia muitas capoeiras com muitos galos”, abordando dificuldades no processo de vacinação. – E o homem providencial, o sábio, que não resistia ao palco e às luzes, ao protagonismo, aproveitando os momentos da desgraça para dar nas vistas, pôs ordem na confusão. O salvador!
6. “(A vacinação) não era para qualquer um.” – Uma pérola de narcisismo, a preocupação doentia em ser grandioso, a tendência para o exibicionismo gratuito. A vaidade de pavão, a jactância de um leão, a manha de protelo, sempre exibindo um convencimento por esclarecer. Perigoso. Já tivemos quem assim se enxergasse, dono da razão, proprietário de virtudes, predestinado.
7. “Serão anos para endireitar o país.” – Esta tese é velha e relha, tem mofo e bolor. As ovelhas no redil, o cajado nas costas e o mestre a guiar as almas. Foi com esta desculpa, interrompendo os desvarios dos insurgentes afonsistas, que em 1926 se instaurou uma ditadura, que durou 48 anos. Tem subjacente uma triste ideia de menoridade intelectual e social do povo português, o mesmo que expulsou os árabes e cruzou oceanos.
Dito isto, sumariemos. O almirante entra-nos como o produto que os marqueteiros dulcificam e adoçam, o Messias, o D. Sebastião, escondendo propositadamente o lado negro, irresponsável e aventureiro do jovem monarca, o bravo desastrado, belicoso e inclinado para a guerra, mas incauto, insano e imprudente, surdo a conselhos avisados, que o historiador Joel Serrão classificou de “um grandíssimo pedaço de asco”…” que em apecto algum revelou quaisquer qualidades…quer a nível intelectual, quer até de natureza moral”.
Para mim, estes sete bilhetes postais bastam-me. São o essencial. O resto, que vier por acréscimo, é produção, maquilhagem, verniz. Pose e arranjo. Artimanha e sedução.
Não há um único país ocidental que tenha um militar à frente dos seus destinos… A santa e senhora minha Mãe dizia com frequência e propriedade que valia mais cair-se em graça do que ser-se engraçado. A propósito de uma desfeita ou de um embaraço, era certo e sabido que não continha o desabafo, um ai de contrariedade, fluente e firme. Se vivesse agora, e perante as sondagens que parecem mimar o almirante Gouveia e Melo, diria o mesmo.
Preparemo-nos e cerremos fileiras. Marlon Brando, assim era conhecido na escola, não está talhado para a função. A farda não faz os homens. Não é desrespeito pela pessoa, é zelo, preocupação, cautela.