O trauma colonial

34 milhões de euros, por muito ricos que sejamos, e parece que somos, são uma pequena fortuna que o governo português, ainda em plenas funções, mas já em excruciante agonia, resolveu esbanjar, sem critério nem honra.

  • 13:38 | Terça-feira, 02 de Janeiro de 2024
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Antes de tomar posição, ainda virei o jornal do avesso duas vezes, depois li-o à banda, e só a seguir me deitei.

Indignado, a pensar no assunto. Guardei-me para o outro dia, não fosse o negrume e o nevoeiro da noite turvar-me o entendimento.

De madrugada, no “alevanto” para que a próstata me convoca, vim à sala confirmar o que o escrito anunciava. E, de manhã, lá continuava, escarrapachado, na primeira página do semanário. Já antes, um amigo me havia alertado para o disparate, mas tomei o aviso como uma brincadeira, uma partida de boa vizinhança. A 23 de Novembro do ano que se despede, o Conselho de Ministros, pela Resolução n.⁰ 179/2023, deliberou autorizar a disponibilização, desembolsável até ao final de 2023, de 34 milhões de euros para apoio directo ao Orçamento Geral do Estado de Angola.

Não, não é para pagar qualquer dívida remanescente dos anos coloniais ou para saldar transacções comerciais entre Estados. É para contribuir para o restauro e apetrechamento da Fortaleza de São Francisco do Penedo, em Luanda, construída em 1785, classificada como Património Cultural Nacional de Angola, que passará a albergar o Museu da Luta pela Libertação Nacional de Angola, um tributo a todos os combatentes, que foram muitos, contra o colonialismo opressor.


Compreendo a boa intenção da homenagem a todos quantos também lutaram pela liberdade dos povos. É merecida e justa. Mas, como sempre acontece com o que é duvidoso, absurdo e irracional, há uma sequência de 4 factos estranhos.

1. O encargo começa por ser assegurado por verbas a inscrever no Orçamento do Instituto Camões, que, tendo como missão outras áreas que não passam nem de longe nem de perto pela recuperação de património e museus, e muito menos além-fronteiras, vira barriga de aluguer.

2. Depois, o que antes fora justificado como um apoio às exportações e às empresas portuguesas, passou a encontrar razão nas comemorações do cinquentenário do 25 de Abril, na conexão entre as libertação dos povos portugueses e angolanos e na cooperação para o desenvolvimento e cultura.

3. E Portugal, que começou por ser fiador passou à condição de financiador integral da empreitada que corre sob a responsabilidade da omnipresente Mota-Engil, menina querida e amada do Bloco Central.

4. Para terminar, quando, de visita oficial a Angola, Costa, em discurso na dita Fortaleza, se associou ao júbilo da reabilitação do imóvel, omitiu que já se tinha comprometido, perante o governo angolano, com o pagamento integral das obras.

Apesar das convenientes, mas descabidas explicações, continuo sem entender qual é o interesse nacional que leva Portugal a fazer esta transferência de dinheiros. Por que raio nos havemos de associar a esta iniciativa, que só serve os angolanos? De que matiz é feita esta solidariedade rastejante e bajuladora? Verdadeiramente, o que temos nós a ver com as opções deste Estado terceiro?

 

 

Tanto Portugal como Angola têm os seus antifascistas e anticolonialistas que honram as respectivas memórias colectivas. Se acham bem e oportuno homenageá-los, que o façam nos seus territórios, mas a expensas suas. Que o Museu fosse feito em Portugal, tantos foram os anti-cololialistas nacionais, concordo em absoluto, talvez até viesse tarde. E não faltariam edifícios do Estado devolutos, aptos para esse fim. Mas se Angola igualmente pretende preservar essa memória, pois que o faça, mas com dinheiros seus, e à sua custa. Só lhe ficará bem. E, se quer festa, paga-a. Quem não tem dinheiro, não tem circo.

Estes esquerdismos portugueses só se explicam com resquícios de alguma má consciência da Metrópole, com remorsos por actos menos nobres praticados nas colónias do Império Ultramarino. Desse tempo, guardamos fantasmas e demónios que continuam em bandos à solta, mas não são exorcizáveis por uma qualquer leviandade administrativa do governo da Pátria lusa.

Se há contas por ajustar, se há poeiras e teias de aranha no sótão das memórias coloniais, estejam os responsáveis descansados, que não é um cheque visado que vai resolver esses males. Dessa purga, se encarrega a História, que, a seu tempo, a fará de forma limpa.

Convivemos mal com os traumas do tempo colonial, e depois, quando a dor aperta, dá-nos para esta patetice, é o que é. Uma tentativa vã de amansar a fúria dos espíritos, uma diligência frágil para iludir a consciência pesada. O síndrome da lamechice.

 

 

Por mais fé que eu ponha na sua bondade, esta dita parceria – e que parceria! – não tem ponta por onde se lhe pegue, não tem jeito nenhum. A Angola, que descobriu um parceiro que lhe paga a obra por inteiro e ainda lhe entrega de mão beijada a posse do património, saiu-lhe a sorte grande. Para Angola, é sempre a somar.

Por razões que desconheço, cultivamos com o gigante da África Central uma relação de subordinação, que nos põe permanentemente de joelhos e mãos postas, tudo servindo para agradar ao gigante africano e lhe prestar uma cortesia que fede e humilha.

Deixemo-nos de extravagâncias espúrias!

A lama, que ainda escorre da ocupação colonial, e a memória de uma descolonização mal feita, que nada teve de exemplar, sobrevivem à custa de fertilizantes naturais e não se apagam com borrachas assim.

Entretanto, o Orçamento do Estado, ignorando-as, não inscreve um único cêntimo para as comemorações do quinto centenário de Camões, que já tem comissária, Rita Marnoto.

Cada vez entendo menos de política, e cada menos percebo menos de agendas e prioridades. 34 milhões de euros, por muito ricos que sejamos, e parece que somos, são uma pequena fortuna que o governo português, ainda em plenas funções, mas já em excruciante agonia, resolveu esbanjar, sem critério nem honra.

 

(Fotos DR)

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