Aquilino Ribeiro publicou em 1946 um livro cujo título é “Aldeia, Terra, Gente e Bichos”. Neste quarteto estão os lugares indissociados e indissociadas também as pessoas e os animais formando um conjunto milenar onde a Natureza se entrelaça com tanta harmonia quanto fereza, numa dramaturgia intemporal.
Se em “Arca de Noé – IIIª Classe” (1936), o escritor numa obra dedicada a seu segundo filho Aquilino Ribeiro Machado, juntou o transporte universal e salvífico da humanidade, numa terceira classe onde o povo sempre viajou, já no seu nome próprio “Aquilino”, é premonitoriamente portador da ave mais rainha dos ares que todas as outras.
Romance da Raposa, Andam Faunos pelos Bosques, Quando ao Gavião Cai a Pena, Quando os Lobo Uivam, No Cavalo de Pau com Sancho Pança e em Casa do Escorpião, num leque temporal abrangente de 1924 a 1963, são seis as obras que logo no frontispício evocam simbólica fauna.
Um naturalista nato, por todos os seus textos se evidenciam flora e fauna – homem incluído – prenhes de suas qualidades e seus defeitos. Tal qual o mundo. A “bicheza brava de homem para baixo…”
Talvez seja um pouco por esta recorrência e omnipresença destes intemporais valores que a obra de Aquilino não se anacroniza, antes se impondo por uma temática tão saudosa ao homem de hoje quanto maior foi a distância por ele interposta entre a Terra Madre e primitiva, bulhenta e jovial e a urbe que o atraiu com encantos de eldorado e reposteiros de ilusão.
Um excerto…
“Está dito e redito, provado e contraprovado, que o regime pluvial duma região é condicionado acima de tudo pela sua arborização. Mas não é tudo. A árvore com o seu reticulado subterrâneo reprime a água, disciplina-a de modo que, mercê da sua acção moderadora, nem estalam as madres das nascentes que arrasam os campos, nem os rios correm a monte levando pontigos e alpoldras. A árvore, além de condensador ideal, é um repartidor exímio, almotacé chamam em certos municípios da serra ao homem encarregado de distribuir a tancada de água pelos paroquianos. Ora destes derradeiros tempos tem-se desarborizado desalmadamente sem rei nem roque. Oiteiros, outrora vestidos do verde movediço e espumoso dos bosques, estão hoje hediondamente nus. A falta de combustíveis por um lado, a construção intensiva por outro, levaram ao despovoamento das matas. Em breve os castanheiros serão tão raros como na fauna marítima o é a baleia, e os velhos pinheiros, donde era grato ouvir as rolas, e os carvalhos, onde pousavam os gerifaltes ufanos, são derrubados para sulipas e outras aplicações rendosas. O por é que se faça a derrubada e não se lance à terra penisco e lande correspondentes…”
ou outro ainda, tão actual…
“Ora faltando a água, dea Aqua, casta não obstante aprazer-se das boscagens com suas ninfas, dríades, amadríades e todo o alegre povo dos faunos e silvanos, desertou das paragens lusas. O Estado tem arborizado em harmonia com um plano modestinho, sensatamente concebido e cautelosamente realizado. É pouco. Para ter água nasalbufeiras é preciso ter árvores nos montes. Para que o Cabanas e o Manuel Sem-Tempo não andem à sacholada, é necessário que a serra, a boa mãe serra que produz o sargaço, o feto e o pastio para o rebanho, continuando nesta sua função abastecedora, seja arborizada, o que não é incompatível. Que sejam arborizados quantos ermos calvos há em Portugal, e suas serranias agrestes, bouças desamparadas, terras de sequeiro, chavascais e dunas. Faça-se isto e, com Abril molhado ou não, lá estarão as águas mil.
Nada mais estranho e poético que o rio a correr na terra silenciosa. É a única coisa fora do mundo animal que anda e se vê andar. Abana a árvore, mas o seu tremor não constitui motivo de deleite. A água que vai regando o agro, tagarela se encontra um seixinho no caminho, melopaica se cai do talude, tecendo endeixas entre encher e não encher o cântaro das moças, ainda as vezes que Santo António faz das suas, é um mimo sem igual de amenidade.”
Ambos os excertos de “Aldeia, Terra, Gente e Bichos”, Bertrand, 1946.
Fotos PN@ – Aldeia de Soutosa.