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Rebelo Marinho
O Serviço Nacional de Saúde, que nunca teve tantos médicos e acumula prejuízos, fez ontem 45 anos. E hoje, em Coimbra, celebra-se o aniversário, com festa rija.
A procissão promete ser garrida e os discursos encomiásticos não faltarão para gáudio dos convidados. A velha bandeira será içada, ao som dos aplausos vibrantes. O PS, o PSD, que ao tempo chumbou a lei na AR, e o CDS vão em romaria adorar um santo, que precisa de, com presteza, fazer um milagre para que os crentes continuem a ter fé e os desconfiados não se arredem da devoção. Em dia de celebração, juntar-se-á gente desavinda, ávida de, na aparente e táctica diferença, ser fazer ouvir. Para memória futura, ficarão os rostos de uma irmandade manca, que vive de divergências públicas e de concubinatos privados.
No sábado passado, acompanhei um familiar ao Centro Hospitalar Tondela-Viseu. A senhora, de 84 anos, com Alzheimer e diabetes, desorientada, trazia do SUB de Moimenta da Beira, de onde foi transferida, um diagnóstico de tromboflebite venosa. Quem a assistiu, recomendou pressa, receando males maiores. Depois de triada, demorou 5 horas, até ser bem atendida por uma carinhosa médica brasileira, numa tarde relativamente calma nas urgências. Uma eternidade. Chegados às 15h00, saímos, encostavam-se os ponteiros do relógio à meia-noite.
Continuo na minha, até que as evidências contradigam, com factos e não com os terços partidários, o que penso, há muito, livre que estou de amarras e de palas. O SNS é muito bom para quem, estendido na maca ou sentado na cadeira de rodas, já está a ser assistido e observado, nas unidades de saúde, isto é, para quem já passou as barreiras e os muros da vergonha, para quem já entrou no sistema. A tecnologia, os equipamentos, os cuidados, o rigor e a competência profissional, dos clínicos aos auxiliares, são permanentes e inquestionáveis. O atendimento, o tratamento e o acompanhamento são 5 estrelas. Nada a opor. A diligência e o cuidado são regras. Há maus modos e impertinências pontuais que, fruto decerto de noites mal dormidas e arrufos conjugais, são a excepção num oceano de bons serviços. Também há quem tenha mau feitio, mas com um bater de pé e uma voz mais grossa, reclamando direitos, depressa vai ao lugar.
Mas até chegar aí, até adentrar na esperança, até ver uma luz ao fundo do túnel, é um tormento, um calvário que consome, desespera e faz descrer. Até que se avistem as batas negras e as mais escuras, que julgo serem o cartão do internato, e o estetoscópio ao pescoço, é uma enormidade de tempo, em que quase tudo se esvai.
Aos que, imersos numa ideologia cega, só vêem virtudes e méritos no SNS, recomendo calma, bom senso e umas horas nas urgências, indiferentes ao verbo sacrossanto dos oragos do poder, que vendem como bom o que, há muito, está fora do prazo de validade.
Talvez deixem de o olhar como um dogma, uma “vaca sagrada”, que se adora, mesmo infértil e devassa, imprestável. Mantendo-o, na sua pureza inicial, tal e qual como António Arnaut o concebeu, não querendo ver que os tempos mudaram, e não aceitando libertá-lo de uma carga ideológica que o desfigura, teimando apresentá-lo como o alfa e ómega de todos os problemas, demos cabo dele estragámo-lo. Aviltámos a sua essência.
O SNS está sem médicos, sem enfermeiros, sem técnicos de diagnóstico, sem auxiliares. Os que permanecem, anseiam por uma oportunidade que os gratifique. O SNS não tem meios. Por isso, se espera tanto, por isso, há filas, por isso, há serviços encerrados. Não é porque não se queira, por preguiça ou incúria que se aguarda tanto, o relatório é mais duro, é porque não se pode mesmo, é porque há um vazio, é porque não há meios. Concebido há 45 anos, não se reorganizou para responder às necessidades de uma população envelhecida e que vive mais tempo, embora mais frágil e doente.
São erros e erros acumulados ao longo de anos, por políticas negligentes, escravas do bezerro de ouro que a Europa impõe.
No dia em que assumirmos que este SNS está podre, que a gratituidade universal dos serviços, ditada no período do esplendor democrático, é socialmente injusta, que a condição de recurso se deve impor como regra ponderada, já que não vislumbro razões para eu pagar o mesmo que um sem-abrigo, nem igual a um deputado, ministro, presidente uma empresa pública ou banqueiro sério, que o tendencialmente é mesmo isso e nada para além disso, que quem se forma com os dinheiros e em instalações do Estado, não pode desertar como um soldado que se recusa a combater numa guerra injusta, ignorando o investimento feito, que quem cuida da saúde dos outros não é um animal de carrego, que se vê obrigado a trabalhar até à exaustão, nesse dia santo, estaremos mais perto de aligeirar a carga de trabalhos que este problema traz às costas arqueadas.
A verdade é que o SNS, para responder em prontidão e com qualidade, como se exige que assim aconteça, não pode ser um bodo aos pobres nem um Natal dos Hospitais, festins que, indistintamente, servem menus a todos, mas não primam pela excelência dos pratos.
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